sexta-feira, maio 26, 2006

Os degraus do coração...

"O sonho dela.
Claro.
Ele apenas tinha perguntado se ela não podia passar duas noites inteiras no hotel. E isto porque ela tinha comentado que o marido estaria ausente naquela semana. Claro.
Era muito mais confortável dormir com ela do que ter de içar forças para se vestir e a levar a casa, quando já estava estonteado de sono.
Ela insistia em voltar para casa de táxi. Mas ele era um cavalheiro. Levantava-se estoicamente e levava-a a casa. Uma, duas. A ilusão dos números. Uma noite era um prolongamento da amizade colorida. Duas, uma promessa romântica. Pelo menos para ela, que começou imediatamente a procurar na internet hotéis à beira-mar. Deixando para trás a preparação do colóquio internacional, note-se. Depois queixem-se de que as mulheres são preteridas nos lugares de responsabilidade. Ele nunca deixaria que o seu entusiasmo por ela interferisse, um minuto que fosse, no seu trabalho. Ele não perdia tempo a ler romances, como aquele, do reaccionário Milan Kundera, que distinguia o sexo do sono partilhado. Como era a frase? «A partilha do sono era o corpo de delito do amor». Literatura. Rememorou as noites que partilhara com ele na juventude. Tinham dormido juntos num hotel barato de Paris, no comboio de Paris a Lisboa, e, depois, em casa de vários amigos em várias cidades. E essas noites infinitas tinham caído num buraco negro, durante quase vinte anos.

- O teu sonho não vai poder realizar-se - dissera ele, sorrindo."

in "Os Degraus do Coração, Inês Pedrosa

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