Não consigo descrever a falta que me fazes...
"Não consigo descrever a falta que me fazes. O teu amigo Pascoal disse-me que devia escrever tudo o que recordasse de ti. Mesmo as coisas insignificantes. O insignificante é fácil- é aquilo que não se esquece. A forma como tu procuravas todas as poças de água, e chapinhavas como uma criança. O teu encantamento pela chuva, pelas lareiras, pelas ondas violentas e o vento que te fazia rodopiar, nos dias de Inverno. O barulho do teu isqueiro, que me servia de despertador - quando fumavas, a primeira coisa que fazias, ao acordar, era acender um cigarro. Eu implicava contigo, porque não gostava de fumo nos quartos e porque efectivamente acordava com o teu isqueiro, do lado de lá da parede - tão finas eram as paredes e tão intenso o silêncio, nessa nossa morada de paz. Sobretudo, implicava contigo porque me preocupava com a tua saúde. Em vão, bem sei - afinal morreste com a saúde intacta.
O insignificante é fácil, na sua litania repetitiva. O Pascoal escreveu-o para ti, a canção sobre "A Sombra das Nuvens no Mar" de que tu gostavas tanto. Sobra a porra do significante - a porra do paquidérmico significante, que só nos romances se pode captar. Nem que seja por intermitências.
Tu esfumaste-te, já não posso ficcionar-te. És como uma nuvem que me embrulha - não vejo nada para além de ti, nem para dentro de ti. E o que vejo para dentro de mim, não sei que faça disso - matéria descoroçoada, matéria de tristeza e remorso.
Talvez pudesse partir desta névoa para um ensaio sobre a fragilidade da vida e a cegueira das ambições - mas isso não seríamos nós. Além de que herdei de ti um puro prazer da vida que se esgota numa só página. Prefiro esquecer, esquecer-te até se preciso for, para viver como tu vivias, apreciando cada momento - sobretudo os dolorosos, pela lucidez que trazem como bónus - desta tão precária maravilha a que chamamos existência.
Tantas vezes te aconselhei as virtudes do silêncio. Queria calar-te para te proteger, sim. Há poucas pessoas apetrechadas para a verdade - mesmo nós, quantas vezes não fechámos à chave umas verdadezitas mais cortantes para não nos magoarmos? Creio que me fazes - scchiuuuu! - assim, com um vagar de embalo, sempre que a voz da minha consciência (seja lá isso o que for) sobe o tom para me acusar pelo que não te dei.
Creio sem crer, como um condenado. Afinal de contas, não tenho nada a perder. Mesmo que os anjos não existam, as asas com que te vejo, sentada na beira da minha cama, do cume enlouquecido da minha insónia, ficam-te melhor do que todas as tuas toilettes de vida. Esforço a imaginação, estendo-a até aos teus dedos, mas não consigo mais do que um ligeiro roçagar de asas. São os lençóis que agito, bem sei - mas não me concederás a graça de transformar a fimbria do meu lençol na ponta dos teus dedos?"
in "Fazes-me Falta", Inês Pedrosa
O insignificante é fácil, na sua litania repetitiva. O Pascoal escreveu-o para ti, a canção sobre "A Sombra das Nuvens no Mar" de que tu gostavas tanto. Sobra a porra do significante - a porra do paquidérmico significante, que só nos romances se pode captar. Nem que seja por intermitências.
Tu esfumaste-te, já não posso ficcionar-te. És como uma nuvem que me embrulha - não vejo nada para além de ti, nem para dentro de ti. E o que vejo para dentro de mim, não sei que faça disso - matéria descoroçoada, matéria de tristeza e remorso.
Talvez pudesse partir desta névoa para um ensaio sobre a fragilidade da vida e a cegueira das ambições - mas isso não seríamos nós. Além de que herdei de ti um puro prazer da vida que se esgota numa só página. Prefiro esquecer, esquecer-te até se preciso for, para viver como tu vivias, apreciando cada momento - sobretudo os dolorosos, pela lucidez que trazem como bónus - desta tão precária maravilha a que chamamos existência.
Tantas vezes te aconselhei as virtudes do silêncio. Queria calar-te para te proteger, sim. Há poucas pessoas apetrechadas para a verdade - mesmo nós, quantas vezes não fechámos à chave umas verdadezitas mais cortantes para não nos magoarmos? Creio que me fazes - scchiuuuu! - assim, com um vagar de embalo, sempre que a voz da minha consciência (seja lá isso o que for) sobe o tom para me acusar pelo que não te dei.
Creio sem crer, como um condenado. Afinal de contas, não tenho nada a perder. Mesmo que os anjos não existam, as asas com que te vejo, sentada na beira da minha cama, do cume enlouquecido da minha insónia, ficam-te melhor do que todas as tuas toilettes de vida. Esforço a imaginação, estendo-a até aos teus dedos, mas não consigo mais do que um ligeiro roçagar de asas. São os lençóis que agito, bem sei - mas não me concederás a graça de transformar a fimbria do meu lençol na ponta dos teus dedos?"
in "Fazes-me Falta", Inês Pedrosa
Etiquetas: Falar...
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home