sábado, julho 01, 2006

Marmelada em percentagens...

"Gostam de marmelada? Não, não é dessa que estão a pensar, é mesmo da outra, a genuína, a autêntica, a que é feita desse maravilhoso, suculento e saboroso fruto que é o marmelo.

Eu sou doidinha por marmelada. Deve ter a ver com as recordações de infância, quando no fim do Verão, depois de três meses a fio na quinta dos meus avós, a cozinha se enchia de panelões gigantes e os netos se sentavam à volta da mesa de pedra a descascar marmelos generosos e sensuais. O tamanho dos panelões era impressionante e eu imaginava sempre o um batalhão de Joões Ratões perdidos lá dentro, à roda sem parar, empurrados para a direita pelo movimento regular e sincopado da enorme colher de pau à medida que a fruta amolecia e cozia sob o lume brando e paciente. Horas depois, vertia-se a rica papa pastosa e de uma cor que ainda hoje não sei definir para mais de 30 taças redondas e fundas da loiça das Caldas e deixava-se arrefecer.

Era aquela marmelada que me adoçava os Invernos chuvosos e friorentos à porta do prédio, com os pés pregados ao chão à espera da camioneta da escola. Era aquela marmelada que me fazia engolir a insípida e obrigatória maçã no fim de cada refeição. Era aquela marmelada que eu comia com pão, com banana ou com nada, em investidas clandestinas à dispensa para surripiar um fatia torta e fininha que me sabia a fruto proibido, isto muito antes de descobrir as diferentes e também deliciosas conotações que o mesmo termo pode ter quando utilizado noutros contextos.

A marmelada é uma coisa altamente respeitável e qualquer família que se preze tem que ter uma quinta ou uma tia avó, ou, no pior dos casos, uma vizinha que seja fornecedora de marmelada. E tem imensas vantagens: sabe bem, tira a fome e dura imenso tempo. Eu gosto das coisas que duram imenso tempo. É como nos namoros. Com os meses vão ficando sempre melhores, tudo se apura e se organiza no melhor dos sentidos para que os nossos cinco sentidos possam dar o seu melhor. Claro que esta ideia só é válida para quem já passou a fase das apostas múltiplas ou do medo de se prender, manias muito em moda entre a juventude.

Pois é, voltando à bela marmelada, sem saber muito bem porquê, estive durante anos sem a comer. Esqueci-me que ela existia e agora que, por um acaso de sorte, a deixei entrar novamente na minha existência é que sinto a falta que me fez. É como aquelas pessoas que fazem de tal forma parte da nossa vida que às vezes até nos esquecemos de as tratar bem e podemos estar meses sem as ver, mas quando elas regressam, trazem consigo aquele conforto indizível que só os que nos conhecem mesmo bem e gostam mesmo muito de nós nos podem dar, tipo pai, mãe, melhor amigo da secundária ou eterno namorado que nunca foi nem deixou de ser o tal.

Mas porque me lembrei eu deste tema, em plenas férias, quando está tudo a caminho, estacionado ou de regresso de uma praia qualquer?

Porque, estando também eu de férias com a família, deparei com uma embalagem de marmelada que dizia “Aproveite! Mais 11% de marmelada”. O que são mais 11% de marmelada? Porque é que os prazeres da vida, mesmo os mais simples como é, por exemplo, comer marmelada, também têm percentagens? Com esta mania doentia de quantificar tudo em número e percentagens, qualquer dia diz a Sandra ao Ivo: olha, eu gosto 70% de ti quando estás calado e 20% quando falas de futebol. Ou então, comenta o Luís com o Pedro: sabes, a minha nova namorada é 60% podre de boa. É que os outros 40% são as pernas, que estão um bocado gordas.

Eu não quero mais 11% de marmelada. Eu só quero que me deixam comer a minha marmelada em paz. Com ou sem fruta."

Margarida Rebelo Pinto

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