Sozinha...
"Ela caminhava pela casa, atravessava os corredores, subia as escadas, descia, sentava-se nas cadeiras a almoçar, a jantar ou apenas a lembrar-se de quando aquela casa estava cheia de gente. Ela tinha sido uma rapariga, tinham passada Invernos e verões. Nos seus ouvidos, muitas vezes, apareciam ainda restos das vozes que tinham existido naquela casa e que lhe sussurravam palavras, lhe contavam histórias. Essas vozes eram as memórias dos seus pais vivos. Era a irmã mais nova antes de partir. Não vás, fica comigo. Tenho de ir.
Ela não se esquecia de nada. Lembrava-se de ser pequena e a mãe ensinar-Ihe a bordar. A mãe e ela, tão juntas, tão mãe e tão filha, serenas e compenetradas em fins de tarde, a erguerem a agulha lentamente, a linha esticada. Lembrava-se de ser pequena e o pai levantá-Ia por baixo dos braços. No centro da sala, o pai a rir-se, ela a rir-se e a luz branda, filtrada pelas cortinas das janelas. Lembrava-se de ser pequena e ensinar palavras à irmã. Lembrava-se de serem raparigas e ficarem no quarto a falar de segredos. Lembrava-se do dia em que a irmã partiu, a despedida. Lembrava-se de cada palavra que a irmã lhe escreveu em cartas cada vez mais curtas, cada vez mais espaçadas, até ser apenas uma carta no aniversário e outra no Natal, até não ser nenhuma carta, até passarem anos sem nenhuma carta.
E, só hoje, depois de passar pela cozinha, pela sala, depois de passar os dedos pelo pó que cobre o piano, se lembrou do seu próprio corpo. Subiu as escadas até ao quarto. Os seus passos foram silenciosos. Abriu a porta do armário. Parou-se em frente ao espelho antigo onde, tantas vezes, se viu com vestidos novos e não se encontrou. O espelho atravessava-a e não a reflectia. A sua imagem diluiu-se no ar, transformou-se nem sequer em movimento. E só hoje, ela quis gritar, rasgar a garganta com gritos, mas teve a certeza absoluta de que ninguém poderia ouvi-la."
José Luís Peixoto
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