domingo, setembro 17, 2006

Havia na minha rua um rapaz gordo...


"Havia na minha rua um rapaz gordo
que comia a sua merenda e a dos outros
com uma verocidade animalesca
que tingia de vergonha o rosto enrugado
das velhas conspirando intrigas
atrás das cortinas de renda
saídas das mãos trémulas das avós.
As cortinas conseguiam ser mais velhas
que as próprias velhas vigiando o mundo
com a aparência infinita das bordadeiras.

O rapaz gordo que comia as merendas
nunca leu um poema, posso garantir,
e muito menos alimentou a esperança
de poder um dia vir a ser citado
num verso só que fosse. Mas aconteceu.
Se lhe franqueio as portas desta lembrança
é porque a poesia é, afinal, tão voraz
como esse devorador de merendas,
como esse ladrão de bolas de Berlim
que assaltava cacifos e pastas
em busca do êxtase de um doce.

A poesia assalta memórias,
devassa infâncias, viola segredos indizíveis,
confisca mistérios, retratos e cartas.
E não engorda, e não se arrepende, e não sabe,
não quer e não pode pedir desculpa.
Ela devora o corpo de quem escreve,
mas fá-lo sempre em nome da alma."

in "O Livro Branco da Melancolia", A grande Devoradora, José Jorge Letria
imagem: Fernando Botero

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1 Comments:

At 6:33 da manhã, Blogger liliana_lourenço said...

Gostei deste texto!

**bmw**

 

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