Ao espelho...
Há qualquer coisa de profundamente irresistível nos homens que nunca deixam de ter ar de rapazes que jogam à bola e vão a pé para o liceu. O olhar aceso de quem acabou de roubar chocolates da dispensa, o andar errático, os cabelos sempre despenteados, as mãos claras, direitas e sem marcas do tempo e o riso tímido como se fosse sempre a primeira vez. São meninos para sempre e podem viver para sempre no coração de uma mulher.
Tu és assim uma espécie de rapazinho capaz de grandes tropelias que esconde a idade atrás da candura que nunca perdeste, apesar de todas as marcas que foste herdando dos dias; a infância guardada numa caixa escondida debaixo da cama, a adolescência dos copos e das drogas leves, o teu melhor amigo que roubou a miúda de quem gostavas no Verão em que fizeste 18 anos, a primeira vez que andaste à pancada, o medo do outro ser mais forte e de se rirem de ti, a vontade de sair de casa e abraçar o mundo, e depois a solidão repartida entre as mulheres que desejaste e nunca tiveste e as outras, as que te incendiavam o corpo e te deixavam o coração em pedra porque nunca as amaste.
Depois cresceste, começaste a trabalhar, a usar fato e gravata quando era preciso e agora, todas as manhãs, ao espelho, perguntas à tua imagem quem és tu afinal, a viver numa cidade que não é tua nem de ninguém numa casa pequena demais para os teus sonhos que se dissolvem no vapor do duche da mesma forma que já perdeste uma ou duas mulheres que não soubeste ou quiseste amar da forma certa, aquela que faz com que as pessoas continuem juntas pela vida, como se tivessem sido separadas à nascença e um fio invisível as voltasse a unir para sempre. E perguntas à tua imagem onde vês um homem mais baixo, menos belo e menos inteligente do que na realidade és se essa mulher já passou pela tua distracção ou se a divina providência ainda ta pode trazer, vestida de Primavera com os cabelos compridos e um sorriso tão sem idade como o teu. Imaginas a sua chegada como se descesse de um baloiço suspenso das nuvens, as pernas compridas e os braços estendidos, o cheiro adocicado da pele clara, a boca a pedir atenção e o olhar a perguntar-te se a vais escolher, quando foi ela que já te escolheu e só te está a dar a ilusão que és tu que mandas nas tua vida.
Ao espelho, onde vês o reflexo entre o homem que és e aquele que gostarias de ser, respiras fundo e desejas que essa mulher chegue um dia, mas não demasiado cedo para te assustar nem demasiado tarde porque entretanto pode aparecer outra e tu vais deixar-te ir, convencido que é essa e não eu a mulher da tua vida.
O que tu não sabes, meu querubim cansado, é que do outro lado do espelho eu te vigio, como se fosse o teu avesso e te protejo, como se fosse o teu presente, e te desejo, como se pudesse ser o teu futuro.
Mas é ainda demasiado cedo, é ainda tempo de guardar no silêncio dos dias a vontade de te querer. É ainda de manhã e tu estás atrasado para o trabalho e eu estou adiantada na tua vida, por isso respiro fundo do outro lado da tua imagem e espero, sentada no baloiço, lá mesmo em cima, para que não me vejas, que um dia dês o salto para o outro lado da tua vida e sejas quem sempre sonhaste para que te vejas ao espelho como eu já te vejo, como tu és.
Margarida Rebelo Pinto
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