quinta-feira, maio 04, 2006

Caminhos do espelho...

"E sobretudo olhar com incidência.
Como se nada se passasse, o que é certo, mas a ti quero olhar-te até estares longe do meu medo, como um pássaro no limite afiado da noite. Como uma menina de giz cor-de-rosa num muro muito velho subitamente esbatido pela chuva. Como quando se abre uma flor e se revela o coração que não tem. Todos os gestos do meu corpo e voz para fazer de mim a oferenda, o ramo que o vento abandona no umbral. Cobre a memória da tua cara com a máscara daquela que serás e afugenta a menina que foste. A nossa noite dispersou-se com a neblina. É a estação dos alimentos fritos. E a sede, a minha memória é de sede, eu em baixo, no fundo, no poço, bebia, recordo. Cair como um animal ferido no lugar de hipotéticas revelações.
Como quem não quer a coisa.
Nenhuma coisa.
Boca cosida.
Pálpebras cosidas.
Esqueci-me.
Dentro o vento.
Tudo fechado e o vento dentro.
Sob o negro sol do silêncio douravam-se as palavras, mas o silêncio é certo.
Por isso escrevo. Estou só e escrevo.
Não, não estou só.
Há alguém aqui que treme.
Ainda que diga sol e lua e estrelas refiro-me a coisas que me acontecem.
E o que desejava eu?
Desejava um silêncio perfeito.
Por isso falo.
A noite parece um grito de lobo.
Delícia de perder-se na imagem pressentida. Levantei-me do meu cadáver, fui á procura de quem sou. Peregrina, avancei em direcção àquela que dorme num país ao vento. A minha queda sem fim na minha queda sem fim onde ninguém me esperava pois ao descobrir quem me esperava outra não vi senão a mim mesma. Algo cai no silêncio. A minha palavra foi eu embora me referisse à aurora luminosa. Flores amarelas constelam um círculo de terra azul. A água treme cheia de vento. Deslumbramento do dia, pássaros na manhã. Uma mão desata as trevas, arrasta a cabeleira da afogada que não cessa de passar pelo espelho.
Volto à memória do corpo, hei-de regressar aos meus ossos de luto, hei-de compreender o que a minha voz diz."

Alejandra Pizarnik (Argentina, 1936-1972)