Paraíso...
Ascensão para o Céu — Transplantação — A ordem do Universo
“A glória Daquele que tudo move penetra por todo o Universo, que a reflecte mais em algumas partes, e menos em outras. Eu estive no Céu onde a Sua luz é mais intensa, e vi coisas que homem algum, de lá retornado, seria capaz de relatar. Pois quando nossa mente se perde nas profundezas do nosso desejo, a memória não tem poder para segui-la. Mas, tudo que, do Reino Santo, consegui guardar na minha mente, será agora matéria do meu canto.
Ó bondoso Apolo, para esta tarefa derradeira, fazei de mim um vaso digno de receber vossa inspiração. Até agora, tenho dirigido minhas preces a somente um dos picos do Parnaso, mas agora eu preciso de ambos. Entrai em meu peito, divina Virtude, e me emprestai um sopro do vosso poder para que pelo menos as sombras do Reino Sagrado, gravadas em minha mente, eu possa manifestar. De uma pequena faísca pode surgir uma grande chama: talvez alguém, depois de mim, com melhor voz, poderá, enfim, receber vossa resposta.
A luz do mundo surge aos mortais das mais variadas fontes, mas do ponto onde unem-se quatro círculos e três cruzes, nasce o Sol no seu melhor curso, na sua melhor constelação, iluminando a cera do mundo com sua melhor influência. Quando cheguei àquela foz o dia amanhecia e aqui, de onde escrevo, era tarde. Agora, o Sol brilhava com sua melhor luz naquele hemisfério, enquanto neste já era noite.
Com o olhar fixo, Beatriz encarava o Sol sem piscar, como águia alguma jamais teria feito. Como um raio, seu olhar se infundiu em minha mente que se deixou inundar com o reflexo da sua luz e fez com que eu também fitasse o Sol por mais tempo que eu seria capaz. Naquele lugar sagrado, muito mais coisas são permitidas aos sentidos humanos que aqui na Terra. Não pude olhar muito, mas o suficiente para ver a esfera do Sol contornada por faíscas, como fogo escapando de ferro derretido. Subitamente, pareceu-me que um dia iluminava o dia seguinte, como se Deus tivesse decorado o céu com outro Sol.
Livre da luz que preenchia as alturas, virei o olhar para Beatriz, que permanecia fitando o Sol. E então senti uma coisa que eu seria incapaz de descrever. Algo similar, talvez, à transformação sofrida por Glauco, ao provar a erva que o transformou em um deus. “Transplantação,” é a melhor palavra que posso oferecer, para algo que não se pode explicar com palavras. Se era apenas a minha alma, separada do corpo, que subia, só aquele Amor que governa o Céu poderia dizer.
Enquanto ouvia as afinadas harmonias, emanadas das esferas celestes que giravam sem parar, vi toda a extensão do Céu acender-se com as chamas do Sol. Impressionado com tal visão, fiquei ansioso por conhecer a causa. Ela, sempre atenta, me respondeu antes que eu pensasse na pergunta:
— Estás tão distraído com tua falsa imaginação que não percebestes que não estás mais com os pés sobre a Terra. Podes não ter percebido, mas, um raio nunca desceu à Terra tão rápido quanto tu, agora, sobes à tua casa.
Sua explicação saciou minha curiosidade, mas não deixou de fazer brotar na minha mente novas dúvidas. Eu disse.
— Estou contente por compreender esse fenómeno que me causa grande admiração, mas, ainda me admira que eu possa ascender através desses corpos mais leves.
Ela suspirou. Depois sorriu e me olhou como uma mãe que observa seu filho num momento de devaneio, e explicou:
— Todas as coisas estão submetidas a uma ordem, visível através de sua forma. Esta ordem revela a semelhança entre o Universo e Deus. Assim as criaturas mais elevadas reflectem as formas dos valores eternos, que é o fim para o qual foram criadas. E, nessa ordem, todas as coisas, no final, voltam sempre às suas origens. É isto que faz o fogo ascender à Lua. É o que move os corações humanos. É o que une as partes e faz a Terra ser uma só. Isto explica porque estamos retornando à mais alta esfera, que é a nossa casa. É verdade que, às vezes, a forma não se molda a real intenção da arte, quando ao ser chamada, a matéria é surda. Por isto, a criatura de Deus, embora destinada a voltar para sua origem, por ter o poder, pode escolher outro destino. Assim como o fogo pode ser visto caindo da nuvem, também o impulso soberano do homem pode voltar à Terra por falso prazer. Não deves te admirar, portanto, de estares subindo, mais que te admirarias ao ver a água fluir, do alto da montanha até a planície. Estranho seria se tu, livre, tivesses permanecido lá em baixo. Seria tão inacreditável quanto ver uma chama, na Terra, permanecer imóvel.
Depois ela se calou, e voltou a olhar para o Céu.”
In "Divina Comédia", livro Paraíso canto I, Dante Alighieri
Ó bondoso Apolo, para esta tarefa derradeira, fazei de mim um vaso digno de receber vossa inspiração. Até agora, tenho dirigido minhas preces a somente um dos picos do Parnaso, mas agora eu preciso de ambos. Entrai em meu peito, divina Virtude, e me emprestai um sopro do vosso poder para que pelo menos as sombras do Reino Sagrado, gravadas em minha mente, eu possa manifestar. De uma pequena faísca pode surgir uma grande chama: talvez alguém, depois de mim, com melhor voz, poderá, enfim, receber vossa resposta.
A luz do mundo surge aos mortais das mais variadas fontes, mas do ponto onde unem-se quatro círculos e três cruzes, nasce o Sol no seu melhor curso, na sua melhor constelação, iluminando a cera do mundo com sua melhor influência. Quando cheguei àquela foz o dia amanhecia e aqui, de onde escrevo, era tarde. Agora, o Sol brilhava com sua melhor luz naquele hemisfério, enquanto neste já era noite.
Com o olhar fixo, Beatriz encarava o Sol sem piscar, como águia alguma jamais teria feito. Como um raio, seu olhar se infundiu em minha mente que se deixou inundar com o reflexo da sua luz e fez com que eu também fitasse o Sol por mais tempo que eu seria capaz. Naquele lugar sagrado, muito mais coisas são permitidas aos sentidos humanos que aqui na Terra. Não pude olhar muito, mas o suficiente para ver a esfera do Sol contornada por faíscas, como fogo escapando de ferro derretido. Subitamente, pareceu-me que um dia iluminava o dia seguinte, como se Deus tivesse decorado o céu com outro Sol.
Livre da luz que preenchia as alturas, virei o olhar para Beatriz, que permanecia fitando o Sol. E então senti uma coisa que eu seria incapaz de descrever. Algo similar, talvez, à transformação sofrida por Glauco, ao provar a erva que o transformou em um deus. “Transplantação,” é a melhor palavra que posso oferecer, para algo que não se pode explicar com palavras. Se era apenas a minha alma, separada do corpo, que subia, só aquele Amor que governa o Céu poderia dizer.
Enquanto ouvia as afinadas harmonias, emanadas das esferas celestes que giravam sem parar, vi toda a extensão do Céu acender-se com as chamas do Sol. Impressionado com tal visão, fiquei ansioso por conhecer a causa. Ela, sempre atenta, me respondeu antes que eu pensasse na pergunta:
— Estás tão distraído com tua falsa imaginação que não percebestes que não estás mais com os pés sobre a Terra. Podes não ter percebido, mas, um raio nunca desceu à Terra tão rápido quanto tu, agora, sobes à tua casa.
Sua explicação saciou minha curiosidade, mas não deixou de fazer brotar na minha mente novas dúvidas. Eu disse.
— Estou contente por compreender esse fenómeno que me causa grande admiração, mas, ainda me admira que eu possa ascender através desses corpos mais leves.
Ela suspirou. Depois sorriu e me olhou como uma mãe que observa seu filho num momento de devaneio, e explicou:
— Todas as coisas estão submetidas a uma ordem, visível através de sua forma. Esta ordem revela a semelhança entre o Universo e Deus. Assim as criaturas mais elevadas reflectem as formas dos valores eternos, que é o fim para o qual foram criadas. E, nessa ordem, todas as coisas, no final, voltam sempre às suas origens. É isto que faz o fogo ascender à Lua. É o que move os corações humanos. É o que une as partes e faz a Terra ser uma só. Isto explica porque estamos retornando à mais alta esfera, que é a nossa casa. É verdade que, às vezes, a forma não se molda a real intenção da arte, quando ao ser chamada, a matéria é surda. Por isto, a criatura de Deus, embora destinada a voltar para sua origem, por ter o poder, pode escolher outro destino. Assim como o fogo pode ser visto caindo da nuvem, também o impulso soberano do homem pode voltar à Terra por falso prazer. Não deves te admirar, portanto, de estares subindo, mais que te admirarias ao ver a água fluir, do alto da montanha até a planície. Estranho seria se tu, livre, tivesses permanecido lá em baixo. Seria tão inacreditável quanto ver uma chama, na Terra, permanecer imóvel.
Depois ela se calou, e voltou a olhar para o Céu.”
In "Divina Comédia", livro Paraíso canto I, Dante Alighieri
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