Dias normais...
"Eu sei que, normalmente, os dias podem repartír-se entre os normais e os extraordinários. No dia normal, levantamo-nos, como sempre. E, como todos os dias, fazemos, ordenadamente, as mesmas tarefas (da forma como, regra geral, esperam que as façamos). Se o bom humor estiver pelos ajustes, rimos (de preferência, com maneiras). Se um golpe (anormal) de mau génio nos atropela esbracejamos, comedidos. E só se qualquer coisa - diferente de todas as outras - se colar, teimosamente, à nossa cabeça, meditamos. A seguir ao jantar, distraímo-nos, cada um com os seus botões (que é, como se sabe, absolutamente dentro do normal). E, depois de dormir, estamos prontos para continuar, normalmente, a tornar cada dia igual a todos os outros.
Num dia normal não acontece nada de extraordinário. (Penso que é assim que, à falta de experiências fora do normal, imaginamos os dias extraordinários.)
Os dias normais são os amantes da tristeza média (que é uma névoa delicada que se atravessa entre as coisas extraordinárias que há em nós e a beleza dos dias) e que, um a um, expulsa os nossos pequenos eus. (Não que sejamos um conglomerado de pequenas coisas sem sentido, como se fossem um fluido inconsistente, uma brisa de passagem ou um murmúrio indecifrável.) Como um jardim se faz de flores muito diferentes, dadas umas com as outras, também no nosso mundo há pequenos nadas que, por si só, podem não ser fantásticos mas que dão cor e movimento e soma tudo o que é extraordinário dentro de nós. Depois de as termos tingido de cinzento, com a tristeza média - não havendo quem as traga de volta, já soltas, para dentro de nós, o nosso coração vai-se resignando a ser, normalmente, encarnado (quando, por dentro, é extremamente colorido).
Lembro-me, agora, de uma conversa com uma pessoa que, ao lamentar-se do burburinho da tristeza média dentro de si, se descrevia como se vivesse entre destroços. De súbito, interpelou-me acerca da utilidade da nossa relação, num contexto tão discretamente normal como era o seu... - Que sentido tem reconciliar-me com a vida no meio de todos os destroços?...
- É bom plantar um jardim entre os destroços...
- Está enganado! Quando tudo se desfaz, é importante que se limpem os destroços, que se abram fundações, que se lancem alicerces... Agora, jardins?!...
- Está enganada! Quando tudo se desfaz, alicerces são os jardins!"
Eduardo Sá
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