terça-feira, junho 06, 2006

No meu lugar...

"Não precisavam de ter respondido ao bilhete que lhes deixei na caixa do correio. Eu, no lugar deles, talvez tivesse fin­gido que o bilhete se tinha perdido entre os papéis da publicidade, entre as contas da luz, Nesse bilhete de caligrafia torta, escrito a lápis, apenas tinha escrito o nú­mero de telefone do hotel e apenas dizia que tinha vivido naquela casa e gostava de visitá-Ia antes de voltar a apanhar o avião no domingo. Foi o homem que me ligou, Foi simpático. Disse-me para ir quando quisesse. Eu, no lugar dele, tal­vez não tivesse sido tão simpático

Vieram todos abrir-me a porta: o ho­mem,a mulher e uma criança, que não teria mais de três anos e que se escon­dia por trás das pernas da mãe, Perante a sua harmonia, durante um instante, ar­rependi-me de ter pedido para ver a casa. Pareceu-me que a minha presença pode­ria trazer-lhes pedaços daquele passado que só eu conhecia, Pareceu-me que po­deria ter continuado apenas com as ima­gens da minha memória, suficientes, de­masiadas, Mas sorri-lhes e eles sorriram­-me.
Entrei.
A sala, onde comíamos, onde discutía­mos, onde fazíamos amor no sofá, tinha um chão de madeira e, pela primeira vez, tinha muita claridade. A cozinha, onde empilhávamos pratos sujos, onde ela me beijava, estava limpa, coberta por azule­jos brancos, brilhantes. O nosso quarto, onde adormecíamos abraçados, era o quarto do menino, estava forrado com pa­pel de parede, colorido por desenhos de animais de uma quinta feliz.

Estrangeiro, amigável, como um vizi­nho cordial, já estava quase a sair quan­do vi uma mancha gasta na porta da rua. Perguntei-lhes o que era. Foi a mulher que me disse que não sabia, que já a ti­nha esfregado com todos os detergen­tes, com escovas grossas. Tentei uma expressão casual e, dentro de mim, lem­brei-me daquela noite e foi como se vis­se de novo o sangue dela, a escorrer pela porta da rua."

José Luis Peixoto

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