No meu lugar...
"Não precisavam de ter respondido ao bilhete que lhes deixei na caixa do correio. Eu, no lugar deles, talvez tivesse fingido que o bilhete se tinha perdido entre os papéis da publicidade, entre as contas da luz, Nesse bilhete de caligrafia torta, escrito a lápis, apenas tinha escrito o número de telefone do hotel e apenas dizia que tinha vivido naquela casa e gostava de visitá-Ia antes de voltar a apanhar o avião no domingo. Foi o homem que me ligou, Foi simpático. Disse-me para ir quando quisesse. Eu, no lugar dele, talvez não tivesse sido tão simpático
Vieram todos abrir-me a porta: o homem,a mulher e uma criança, que não teria mais de três anos e que se escondia por trás das pernas da mãe, Perante a sua harmonia, durante um instante, arrependi-me de ter pedido para ver a casa. Pareceu-me que a minha presença poderia trazer-lhes pedaços daquele passado que só eu conhecia, Pareceu-me que poderia ter continuado apenas com as imagens da minha memória, suficientes, demasiadas, Mas sorri-lhes e eles sorriram-me.
Entrei.
A sala, onde comíamos, onde discutíamos, onde fazíamos amor no sofá, tinha um chão de madeira e, pela primeira vez, tinha muita claridade. A cozinha, onde empilhávamos pratos sujos, onde ela me beijava, estava limpa, coberta por azulejos brancos, brilhantes. O nosso quarto, onde adormecíamos abraçados, era o quarto do menino, estava forrado com papel de parede, colorido por desenhos de animais de uma quinta feliz.
Estrangeiro, amigável, como um vizinho cordial, já estava quase a sair quando vi uma mancha gasta na porta da rua. Perguntei-lhes o que era. Foi a mulher que me disse que não sabia, que já a tinha esfregado com todos os detergentes, com escovas grossas. Tentei uma expressão casual e, dentro de mim, lembrei-me daquela noite e foi como se visse de novo o sangue dela, a escorrer pela porta da rua."
José Luis Peixoto
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