segunda-feira, julho 03, 2006

A nossa casa...

"Nunca se cresce sem se sentir que se está atrasado em relação a, pelo menos, um desejo. E sem passar pela berma de inúmeros desgostos. Não se cresce à margem dos remorsos (que, para mais, resultam da distância que vai entre tudo o que sonhámos e aquilo que, sobretudo, nunca deixou de ser um sonho). É claro que persiste, em todos nós, uma aragem mais ou menos agreste quando se olha (de soslaio que seja) para trás. Fica sempre tanto por fazer!... E fica, às vezes, esta tentação de «começar de novo» ou de «mudar de vida» (que é tudo o que alguém imagina ao colorir, de rabisco em rabisco, o seu destino, quando não vai à procura de quem o resgate a um mesmo lugar). É verdade que, logo que se olha para trás, se vê mais longe. Mas é, também, verdade que não há como crescer fazendo que o futuro seja lá atrás.

Crescer não é deixar de se caber - disfarçado - debaixo dos lençóis. Nem ficar encolhido na cabana, onde, antes, se estava à larga e esparramado. Crescer é, para muitas pessoas, descobrir que nem sempre que se constrói um tecto se conquista uma casa.
Não se cresce quando se transforma os espaços da nossa infância na casa dos nossos pais (muito menos se, entretanto, não se encontrou um lugar melhor, mais soalheiro e mais macio). A casa não é bem um espaço. Nem um conjunto de recantos, de histórias ou de aconchegos. Nem, sequer, o nosso mundo. Mas, sendo assim, suponho que a maioria das pessoas tenha uma casa... e viva sem abrigo.
Talvez o crescimento seja um rio que tem como margens o desejo e o desgosto (como, noutro dia, alguém me disse). E talvez haja quem ligue as duas margens. Os amigos, por exemplo. Alguns projectos especiais, quem sabe?!... Mas somente as pessoas que nos sentem como a sua casa ligam mais fundo as duas margens do que o rio que, por vezes, as separa. Assim o tornam navegável.

A casa não é bem um espaço. Nem um conjunto de recantos, de histórias ou de aconchegos. Nem, sequer, o nosso mundo. Mas há pessoas que inventam recantos, constrõem histórias e enlaçam aconchegos. E se transformam, de surpresa, no lugar de onde, mal chegados, nunca gostaríamos de ter saído. Chegam-nos a nós como estrelas contrafeitas. (Eu tenho para mim que as estrelas nunca saem do céu sem que esmoreçam ou, até, se apaguem. A não ser aquelas que nos dão uma luzinha, sempre que sobram remorsos e desgostos, e logo outra, sempre que nos guiam pelo desejo. São as estrelas contrafeitas). Vivem de coração descalço. E - como mais ninguém - sabem que a nossa casa não é bem um espaço, um esconderijo (debaixo dos lençóis), uma cabana na árvore, todos os espaços da nossa infância que se transformaram na casa dos nossos pais, ou um abrigo. A nossa casa é o coração que (sóbre todas as suas divisões) nos guarda a melhor de todas as mansardas."

Eduardo Sà

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