sábado, agosto 04, 2007

Eu não digo que eu tenha muito...

"Eu não digo que eu tenha muito, mas tenho ainda a procura intensa e uma esperança violenta.
Nós ainda somos moços, podemos perder algum tempo sem perder a vida inteira. Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós mesmos e a isto considerado vitória nossa de cada dia.
Não temos amado acima de todas as coisas.
Não temos aceito o que não se entende por que não queremos passar por tolos.
Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada.
Temos construído catedrais e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos, pois este seria o começo de uma vida larga, e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro que por amor diga: tens medo.
Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme, e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa.
Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que a nossa indiferença é a angústia disfarçada.
Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isto nunca falamos o que realmente importa.
Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.
Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz.
Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E a tudo isto consideramos a vitória nossa de cada dia."

in "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres", Clarice Lispector

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