domingo, agosto 26, 2007

Não há deusas...

"A minha deusa é alta, esguia e infinita. Tudo nela é grande e ao mesmo tempo perfeito, do tamanho dos olhos ao do coração. Possui uma cintura de vespa e um cabelo farto e despenteado, como tão bem lhe compete e melhor lhe assenta. Como todas as deusas, parece eternamente jovem e reina sobre tudo o que a rodeia sem sequer dar por isso. A minha casa e os nossos filhos respiram o oxigénio dela, um ar puro e adocicado como se dos belos dentes brancos se libertasse um hálito divino e dos olhos imensos caíssem fios de mel que suavizam todos os gestos. A voz é grave, serena e quente, própria dos seres que não são bem deste mundo. Nos dedos imensos e nas mãos grandes adormecem os filhos e o meu coração acalma-se, as cores descansam e às vezes a terra suspende a rotação.
A minha deusa é ainda mais bela por não saber que é uma deusa. Não sabe que todos os dias faz milagres na sua máquina de cozinha, não sabe o jeito que tem para ser mãe, não mede a generosidade com que trata os amigos e os filhos dos outros, não sonha o quanto as pessoas que gostam e precisam dela. Mas há deusas assim, que passam pela vida sem adivinhar o que são, como se fossem iguais às outras mulheres e que encolhem os ombros perante os seus defeitos, numa discrição congénita, quase tímida, quase infantil, desconhecendo o imenso poder que emanam.
A minha deusa é minha e leva dentro dela metade de mim. Quando o nosso filho nascer vou ver-me nele e agradecer-lhe para sempre. Será sempre bela na forma pura como se comove com a tristeza dos outros. Tem pena de ter só dois braços porque sabe que neles não cabe o mundo. Mas caibo lá eu, os meus e os nossos filhos, os pais e irmãos dela e as amigas, uma que ajudou a salvar e a outra que a faz rir e lhe escreve páginas de jornal. Sem saber o que a faz levitar, circula pela casa como uma pássaro e o seu sangue corre nas minhas artérias. Não preciso de rezas nem de altar para a minha deusa, porque se senta todos os dias comigo à mesa e dormimos na mesma cama.
Quero tê-la ao meu lado para sempre, porque sei que nunca vai envelhecer, nunca me vai trair, nunca se vai esquecer de quem gosta dela e nunca vai deixar de ser a melhor cozinheira e a melhor mãe do mundo. E quando os nossos filhos crescerem, quero viajar com ela pelo mundo inteiro e casar muito depressa, num ilha escondida onde só os nossos melhores amigos se vão juntar para a grande festa.
Os homens são como os deuses, nascem e morrem nos braços de uma mulher e eu quero ficar com ela e ver o mundo mudar à volta dela enquanto o tempo passa sem lhe tocar, porque os deuses são eternos e mesmo que um dia tudo acabe, sei que tive a maior sorte do mundo, porque vivi na terra com uma deusa e poucos mortais têm tão rara e melhor sorte."

Margarida Rebelo Pinto

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