quinta-feira, agosto 31, 2006

O amor aumenta...

"O amor aumenta com o amarelecimento do linho
maior quietude rodeia agora a casa lunar
soçobram do fundo dos espelhos submersos os instrumentos
de muitos e delicados trabalhos
repousam sobre a erva para sempre

só o desejo dalguma eternidade despertaria o terno arado
mas a vida tropeça nos húmidos órgãos da terra
as selvagens flores afligir-te-ão o olhar
por isso inventaremos o necessário ciclo do Outono

a noite dilata a viagem
pressentimos a nervosa luta dos corpos contra a velhice
mas nada há a fazer
resta-nos descer com as raízes do castanheiro
até onde se ramificam as primeiras águas e se refaz o desejo

as bocas erguem-se
procuram um rápido beijo no éter da casa."

in "Trabalhos do Olhar", Al Berto

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Magnifica Parigi...

Mr G.Q.

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Saber estar...

"A experiência ensina-nos que amar não significa duas pessoas a olhar uma para a outra mas ambos a olharem na mesma direcção."

Antoine Saint-Exupéry

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...

"Há pequenas impressões finas como um cabelo e que, uma vez desfeitas na nossa mente, não sabemos aonde elas nos podem levar. Hibernam, por assim dizer, nalgum circuito da memória e um dia saltam para fora, como se acabassem de ser recebidos.
Só que, por efeito desse período de gestação profunda, alimentada ao calor do sangue e das aquisições da experiência temperada de cálcio e de ferro e de nitratos, elas aparecem já no estado adulto e prontas a procriar. Porque as memórias procriam como se fossem pessoas vivas."

Agustina Bessa-Luís

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quarta-feira, agosto 30, 2006

Hoje sinto-me assim...

Heidi Klum
"Trocaria a memória de todos os beijos que me deste por um único beijo teu. E trocaria até esse beijo pela suspeita de uma saudade tua, de um único beijo que te dei."
Miguel Esteves Cardoso

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O Amor não existe sem ciúme...

"Se o ciúme nasce do intenso amor, quem não sente ciúmes pela amada não é amante, ou ama de coração ligeiro, de modo que se sabe de amantes os quais, temendo que o seu amor se atenue, o alimentam procurando a todo o custo razões de ciúme.
Portanto o ciumento (que porém quer ou queria a amada casta e fiel) não quer nem pode pensá-la senão como digna de ciúme, e portanto culpada de traição, atiçando assim no sofrimento presente o prazer do amor ausente. Até porque pensar em nós que possuímos a amada longe – bem sabendo que não é verdade – não nos pode tornar tão vinco o pensamento dela, do seu calor, dos seus rubores, do seu perfume, como o pensar que desses mesmos dons esteja afinal a gozar um Outro: enquanto da nossa ausência estamos seguros, da presença daquele inimigo estamos, se não certos, pelo menos não necessariamente inseguros. O contacto amoroso, que o ciumento imagina, é o único modo em que pode representar-se com verosimilhança um conúbio de outrem que, se não indubitável, é pelo menos possível, enquanto o seu próprio é impossível.
Assim o ciumento não é capaz, nem tem vontade, de imaginar o oposto do que teme, aliás só pode obter o prazer ampliando a sua própria dor, e sofrer pelo ampliado prazer de que se sabe excluído. Os prazeres do amor são males que se fazem desejar, onde coincidem a doçura e o martírio, e o amor é involuntária insana, paraíso infernal e inferno celeste – em resumo, concórdia de ambicionados contrários, riso doloroso e friável diamante."

in "A Ilha do Dia Antes", Umberto Eco

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Venus and Cupid...

Hans Zatzka

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A aura e o vestígio...

"O vestígio é a manifestação de uma proximidade, por mais longe que possa estar o ser que o deixou. A aura é a manifestação de uma lonjura, por mais próximo que possa estar aquilo que a evoca. Com o vestígio apoderamo-nos da coisa, com a aura é ela que é senhora de nós."

Walter Benjamin

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Quem...

"Quem me roubou o tempo que era um
quem me roubou o tempo que era meu
o tempo todo inteiro que sorria
onde o meu Eu foi mais limpo e verdadeiro
e onde por si mesmo o poema se escrevia."

Sophia de Mello Breyner Andresen

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terça-feira, agosto 29, 2006

Eu quero...

Smart for Two
Pink Edition
Não é a minha cara chapada?!!
Eu Quero UM!! Eu Quero UM!!Eu Quero UM!!

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Poema do amigo aprendiz...

"Quero ser o teu amigo. Nem demais e nem de menos.
Nem tão longe e nem tão perto.
Na medida mais precisa que eu possa.
Mas amar-te sem medida e ficar na tua vida,
Da maneira mais discreta que eu souber.

Sem tirar-te a liberdade, sem jamais te sufocar.
Sem forçar tua vontade.
Sem falar, quando for hora de calar.
E sem calar, quando for hora de falar.
Nem ausente, nem presente por demais.

Simplesmente, calmamente, ser-te paz.
É bonito ser amigo, mas confesso: é tão difícil aprender!
E por isso eu te suplico paciência.
Vou encher este teu rosto de lembranças,
Dá-me tempo, de acertar nossas distâncias…"

Fernando Pessoa

Teu riso...

"Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

À beira do mar, no Outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria."

Pablo Neruda

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Noire et Blanche...

foto: Man Ray

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Paris...

"C'est vrai, j'aime Paris d'une amitié malsaine;
J'ai partout le regret des vieux bords de la Seine
Devant la vaste mer, devant les pics neigeux,
Je rêve d'un faubourg plein d'enfants et de jeux.
D'un coteau tout pelé d'où ma Muse s'applique
A noter les tons fins d'un ciel mélancolique,
D'un bout de Bièvre, avec quelques chants oubliés,
Où l'on tend une corde aux troncs des peupliers,
Pour y faire sécher la toile et la flanelle,
Ou d'un coin pour pêcher dans l'île de Grenelle."

François Coppée

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segunda-feira, agosto 28, 2006

Hoje sinto-me assim...

Kristen Dunst

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A sabedoria e a alegria...

"O sábio autêntico vive em plena alegria, contente, tranquilo, imperturbável; vive em pé de igualdade com os deuses. Analisa-te então a ti próprio: se nunca te sentes triste, se nenhuma esperança te aflige o ânimo na expectativa do futuro, se dia e noite a tua alma se mantém igual a si mesma, isto é, plena de elevação e contente de si própria, então conseguiste atingir o máximo bem possível ao homem! Mas se, em toda a parte e sob todas as formas, não buscas senão o prazer, fica sabendo que tão longe estás da sabedoria como da alegria verdadeira. Pretendes obter a alegria, mas falharás o alvo se pensas vir a alcançá-la por meio das riquezas ou das honras, pois isso será o mesmo que tentar encontrar a alegria no meio da angústia; riquezas e honras, que buscas como se fossem fontes de satisfação e prazer, são apenas motivos para futuras dores.

Toda a gente, repito, tende para um objectivo: a alegria, mas ignora o meio de conseguir uma alegria duradoura e profunda. Uns procuram-na nos banquetes, na libertinagem; outros, na satisfação das ambições, na multidão assídua dos clientes; outros, na posse de uma amante; outros, enfim, na inútil vanglória dos estudos liberais e de um culto improfícuo das letras. Toda esta gente se deixa iludir pelo que não passa de falaccioso e breve contentamento, tal como a embriaguez, que paga pela louca satisfação de um momento o tédio de horas infindáveis, tal como os aplausos de uma multidão entusiasmada - aplausos que se ganham e se pagam à custa de enormes angústias! Pensa bem, portanto, no que te digo: o resultado da sabedoria é a obtenção de uma alegria inalterável. A alma do sábio é semelhante à do mundo supralunar: uma perpétua serenidade. Aqui tens mais um motivo para desejares a sabedoria: alcançar um estado a que nunca falta a alegria. Uma alegria assim só pode provir da consciência das próprias virtudes: apenas o homem forte, o homem justo, o homem moderado pode ter alegria."

in “Cartas a Lucílio”, Séneca

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Não entendo...

"Não entendo.
Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo."

Clarice Lispector

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Quando vieram os ventos, os cavalos começaram...

"Quando vieram os ventos, os cavalos começaram
a relinchar com sede e ânsia de partir.
Ela observou-os a todos, muito agitados,
da janela sem vidros.

Abandonou então o seu templo de brumas
e escolheu o mais novo, aquele que o sol
ainda poderia dourar - e que era também o único
que conhecera os desertos da vida,
as areias onde se ferem os olhos e os passos.

Deu-lhe de beber das suas próprias mãos em concha
e, por muitos dias, alisou-lhe o pêlo
na mesma direcção em que os ventos sopravam.
Montou-o uma noite sem receios nem selas
e partiu para o norte, onde lhe haviam dito
que os sonhos tomam cores e formas fascinantes.

Pouco se conta, porém, dessa viagem que os diabos
interromperam por razões que o destino não conhece.
À medida que ambos se afastavam, o cavalo ia decidindo
os rumos e ganhando asas - asas que ela própria
lhe dera sem saber assim que o libertara.

Quando se achou sentada no chão
entre cardos e seixos
e o viu prosseguir sozinho, levantando poeiras
que os ventos traziam até si, lavou os olhos
na água límpida do lago e olhou-se nele.
Então, teve a certeza de que fora o cavalo
a escolhê-la, e não o contrário."

in "Quando vieram os ventos, os cavalos começaram", Maria do Rosário Pedreira

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domingo, agosto 27, 2006

Antes...

"Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento."

Ricardo Reis

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Fog...

Jean-Marc Legros

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...

"Os caminhos do excesso levam ao palácio da sabedoria."

Willian Blake

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Sensibilidade e maturidade...

"Uma certa vivacidade de impressões, mais directamente dependentes da sensibilidade física, decresce com a idade. Ao chegar aqui, e sobretudo depois de ter aqui passado alguns dias, não senti, desta vez, essas vagas de tristeza ou de entusiasmo que este local me costumava comunicar, e cuja recordação, depois, me era tão doce.
Deixá-lo-ei, se calhar, sem a pena que outrora sentia. O meu espírito, por seu turno, tem hoje uma segurança muito maior, uma maior capacidade de fazer associações e de se exprimir; a inteligência cresceu, mas a alma perdeu parte da sua elasticidade e irritabilidade. E porque é que, ao fim e ao cabo, não partilhará o homem o destino comum de todos os outros seres?
Ao pegarmos num fruto delicioso, será justo pretender respirar ao mesmo tempo o perfume da flor? Foi preciso passar pela subtil delicadeza da nossa sensibilidade juvenil para chegar a esta segurança e maturidade do espírito. Talvez os grandes homens - é o que eu penso - sejam aqueles que, numa idade em que a inteligência possui já a sua plena força, ainda conservam parte dessa impetuosidade das impressões, que é própria da juventude."

in “Diário”, Eugène Delacroix

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De quantas graças tinha, a Natureza...

"De quantas graças tinha, a Natureza
Fez um belo e riquíssimo tesouro,
E com rubis e rosas, neve e ouro,
Formou sublime e angélica beleza.

Pôs na boca os rubis, e na pureza
Do belo rosto as rosas, por quem mouro;
No cabelo o valor do metal louro;
No peito a neve em que a alma tenho acesa.

Mas nos olhos mostrou quanto podia,
E fez deles um sol, onde se apura
A luz mais clara que a do claro dia.

Enfim, Senhora, em vossa compostura
Ela a apurar chegou quanto sabia
De ouro, rosas, rubis, neve e luz pura."

Luís Vaz de Camões

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sábado, agosto 26, 2006

...

"Compreender não é procurar no que nos é estranho a nossa projecção ou a projecção do nossos desejos. É explicar o que se nos opõe, valorizar o que até aí não tinha valor dentro de nós. O diverso, o inesperado, o antagónico, é que são a pedra de toque dum acto de entendimento."

Miguel Torga

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Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda...

"Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda.
Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número da revista, ao primeiro mês de amor.
Cada começo é uma mudança e o coração humano vicia-se em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do início, da inauguração, da primeira linha na página branca, da luz e do barulho das portas a abrir.
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez menos estas actividades.
Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é continuar. A actividade que eu mais amo e respeito é a actividade de manter.
(...)
O esforço de fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas - sejam amores ou tradições, monumentos ou amizades - é o que distingue os seres humanos.
Percebo hoje por que Auden disse que qualquer casamento duradoiro é mais apaixonante do que a mais acesa das paixões. Guardar é um trabalho custoso. As coisas têm uma tendência terrível para morrer. Salvá-las desse destino é a coisa mais bonita que se pode fazer.
Haverá verbo mais bonito do que salvaguardar?"

Miguel Esteves Cardoso

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Rosto...

"Rosto nu na luz directa.
Rosto suspenso, despido e permeável,
Osmose lenta.
Boca entreaberta como se bebesse,
Cabeça atenta.
Rosto desfeito,
Rosto sem recusa onde nada se defende,
Rosto que se dá na angústia do pedido,
Rosto que as vozes atravessam.
Rosto derivando lentamente,
Pressentimento que os laranjais segredam,
Rosto abandonado e transparente
Que as negras noites de amor em si recebem.
Longos raios de frio correm sobre o mar
Em silêncio ergueram-se as paisagens
E eu toco a solidão como uma pedra.
Rosto perdido
Que amargos ventos de secura em si sepultam
E que as ondas do mar puríssimas lamentam."

Sophia de Mello Breyner Andresen

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Hoje acordei assim...

Scarlett Johansson
" Não existirá nunca uma pessoa que possua algo mais que seus próprios pensamentos.
Nem as pessoas, nem os lugares, nem as coisas poderão ser possuídas por muito tempo. Percorremos um trecho do caminho com eles mas, cedo ou tarde, todos teremos que nos apoderar de nossas verdadeiras posses, o que aprendemos, o que pensamos e seguir pelas curvas solitárias do caminho."
Richard Bach

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sexta-feira, agosto 25, 2006

Garra dos sentidos...

"Não quero cantar amores,
Amores são passos perdidos,
São frios raios solares,
Verdes garras dos sentidos.

São cavalos corredores
Com asas de ferro e chumbo,
Caídos nas águas fundas,
não quero cantar amores.

Paraísos proibidos,
Contentamentos injustos,
Feliz adversidade,
Amores são passos perdidos.

São demências dos olhares,
Alegre festa de pranto,
São furor obediente,
São frios raios solares.

Da má sorte defendidos
Os homens de bom juízo
Têm nas mãos prodigiosas
Verdes garras dos sentidos.

Não quero cantar amores
Nem falar dos seus motivos."

Agustina Bessa-Luís

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Diana after the hunt...

François Boucher

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Dar estilo ao seu carácter...

"Dar estilo ao seu carácter... é uma arte deveras considerável que raramente se encontra! Para a exercer é necessário que o nosso olhar possa abranger tudo o que há de forças e de fraquezas na nossa natureza, e que as adaptemos em seguida a um plano concebido com gosto, até que cada uma apareça na sua razão e na sua beleza e que as próprias fraquezas seduzam os olhos. Aqui ter-se-á acrescentado uma grande massa de segunda natureza, nos pontos onde se terá tirado um pedaço da primeira, à custa, nos dois casos, de um paciente exercício e de um trabalho de todos os dias. Neste lugar disfarçou-se uma fealdade que se não podia fazer desaparecer, noutro ela foi transmudada, fez-se dela uma beleza sublime. Grande número de elementos, que se recusavam a tomar forma, foram reservados para ser utilizados nos efeitos de perspectiva: darão os longes, o apelo do infinito. Foi a unidade, a pressão de um mesmo gosto que dominou e afeiçoou no grande e no pequeno: a que ponto, vemo-lo por fim, uma vez terminada a obra; que esse gosto seja bom ou mau, importa menos do que se pensa, basta que tenha havido um.

Serão as naturezas fortes e dominadoras que apreciarão as alegrias mais subtis nesta opressão, nesta escravatura, nesta perfeição ditadas pela lei pessoal; o aspecto de qualquer natureza estilizada, de qualquer natureza, enfim, vencida e submetida, alivia a paixão da sua forte vontade; se têm de construir palácios, se têm de plantar jardins repugna-lhes também deixar a natureza livre. Pelo contrário, os carácteres fracos, aqueles que não se dominam, odeiam a servidão do estilo: sentem que se tornariam inevitavelmente vulgares se esta amarga opressão lhes fosse imposta: não saberiam servir sem se tornar escravos, por isso detestam fazê-lo. Semelhantes espíritos - e podem ser de primeira ordem - empenham-se sempre em se dar a si próprios e em dar ao seu meio o ritmo de naturezas livras - selvagens, arbitrárias, fantasistas, desordenadas e surpreendentes - ou em interpretar-se como tais: e fazem bem, porque é só assim que se satisfazem! Uma única coisa é, com efeito, necessária: que o homem chegue a estar contente consigo, qualquer que seja a arte ou a ficção de que se serve para esse fim: é somente então que ganha uma fisionomia suportável! Os que estão descontentes consigo próprios estão sempre prontos a vingar-se: como nós que seremos as suas vítimas, quanto mais não seja tendo de suportar sempre o seu desagradável espectáculo. Porque o espectáculo da fealdade torna as pessoas más e sombrias."

in "A Gaia Ciência", Friedrich Nietzsche

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quinta-feira, agosto 24, 2006

Pudesse eu...

"Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Para poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes!"

Sophia de Mello Breyner Andresen

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Se houvesse degraus na terra...

"Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã."

Herberto Helder

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Procura...

"Ele procurava o amor apenas nos lugares errados.

Num Verão que lhe pareceu interminável, procurou o amor numa quinta onde havia ovelhas, gansos e cavalos; onde havia a filha do dono e as primas que vinham de França passar as férias e que tomavam banho ao fim da tarde no tanque de rega. Ele espalhava mangueiras pela horta e ouvia os gritos delas a caírem dentro de água. No inicio do Outono, olhava para as águas paradas do tanque e parecia ouvir ainda a ilusão de risos submersos.
Quando partiu um braço, foi levado de ambulância para a cidade e decidiu aproveitar o tempo procurando o amor no hospital. Andava pelos corredores de braço engessado. Olhava ao longe as raparigas que vinham às visitas. Ninguém o vinha visitar e, no entanto, nesses poucos dias, passava todos os instantes à espera da hora da visita. Quando lhe disseram que podia ir para casa, ficou triste e considerou partir o outro braço.

Uma vez por ano, no primeiro domingo de Maio, vestia a melhor camisa que tinha, umas calças lavadas, umas botas engraxadas, e ia procurar o amor na Feira de Maio. Passava horas a olhar para os carros de choque. Às vezes, ria-se sozinho, contagiado pelo riso dos outros. Nesse dia, jantava farturas e era sempre o último, entre ciganos, a ver as tendas serem arrumadas, as portas das carrinhas a fecharem-se, as caixas de sapatos vazias a serem arrastadas pelo vento.
Sentava-se no barbeiro, ouvia os homens a falar e, pelas conversas, tentava descobrir novos lugares para procurar o amor. Ia ao terreiro. Ia à fonte. Ia ao jardim. Dava voltas ao coreto onde não se lembrava de alguma vez ter visto uma banda tocar. Nunca tinha encontrado o amor, mas sabia que iria continuar sempre a procurá-la e, quando se parava a pensar nele, acreditava que iria saber reconhecê-la."

José Luís Peixoto

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Hoje sinto-me assim...

Kate Moss
"A mulher não é um predador, pelo contrário, é a presa que faz uma emboscada ao seu
predador."
Ortega y Gasset

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quarta-feira, agosto 23, 2006

...

"Tendo visto com que lucidez e coerência lógica certos loucos justificam, a si próprios e aos outros, as suas ideias delirantes, perdi para sempre a segura certeza da lucidez da minha lucidez."

in "Livro do Desassossego", Bernardo Soares

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No mundo quis o tempo que se achasse...

"No mundo quis o Tempo que se achasse
O bem que por acerto ou sorte vinha
E, por experimentar que dita tinha,
Quis que a Fortuna em mim se experimentasse.

Mas por que meu destino me mostrasse
Que nem ter esperanças me convinha,
Nunca nesta tão longa vida minha
Cousa me deixou ver que desejasse.

Mudando andei costume, terra e estado,
Por ver se mudava a sorte dura
A vida pus nas mãos de um leve lenho.

Mas, segundo o que o Céu me tem mostrado,
Já sei que deste meu buscar ventura
Achado tenho já que não a tenho."

Luís Vaz de Camões

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The Son of Man...

René Magritte

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Os meios para sermos felizes...

"É comum pensarmos que é difícil ser-se feliz e existem boas razões para assim pensar; mas seria mais fácil sermos felizes se, nos homens, as reflexões e a pauta de comportamento precedessem as acções. Somos arrastados pelas circunstâncias e entregamo-nos às esperanças, que nos proporcionam apenas metade do que esperamos. Enfim, só nos damos claramente conta dos meios para sermos felizes quando a idade e os entraves que a nós próprios pusemos lhes colocam obstáculos.
Para sermos felizes, é preciso termo-nos desembaraçado dos preconceitos, seremos virtuosos, gozarmos de boa saúde, termos gostos e paixões, sermos susceptíveis de ter ilusões, pois devemos a maior parte dos nossos prazeres à ilusão, e infeliz daquele que a perder. Longe, pois, de procurarmos fazê-la desaparecer sob o archote da razão, tratemos de passar mais uma camada do verniz que ela lança sobre a maior parte dos objectos; este é-lhe ainda mais necessário do que os cuidados e os adornos o são para os nossos corpos.

É preciso começarmos por dizer a nós próprios e por convencer-nos de que não temos nada mais a fazer neste mundo, para além de nele procurarmos sensações e sentimentos agradáveis. Os moralistas que dizem aos homens «reprimi as vossas paixões e dominai os vossos desejos se desejais ser felizes» não conhecem o caminho para a felicidade. Só somos felizes mediante gostos e paixões satisfatórias; digo gostos porque não somos sempre felizes o bastante por termos paixões e porque, à falta das paixões, não resta senão contentarmo-nos com os gostos."

in "Discurso sobre a Felicidade", Madame du Chatelêt

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Dar significado ao tempo...

"Um dos prazeres humanos menos observados é o de preparar acontecimentos à distância, de organizar um grupo de acontecimentos que tenham uma construção, uma lógica, um começo e um fim. Este é quase sempre apercebido como um acne sentimental, uma alegre ou lisonjeira crise de conhecimento de si próprio. Isto aplica-se tanto à construção de uma resposta pronta como à de uma vida. E o que é isto, senão a premissa da arte de narrar? A arte narrativa apazigua precisamente esse gosto profundo.
O prazer de narrar e de escutar é o de ver os factos serem dispostos segundo aquele gráfico. A meio de uma narrativa volta-se às premissas e tem-se o prazer de encontrar razões, chaves, motivações causais. Que outra coisa fazemos quando pensamos no nosso próprio passado e nos comprazemos em reconhecer os sinais do presente ou do futuro? Esta construção dá, em substância, um significado ao tempo. E o narrar é, em suma, apenas um meio de o transformar em mito, de lhe fugir."

in "O Ofício de Viver", Cesare Pavese

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terça-feira, agosto 22, 2006

Hoje sinto-me assim...

Diane Kruger
Vá lá... conta lá os q se passa contigo que eu vou ouvir tudo!!
Tá tudo doido... menos EU!!

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Saber estar...

"Se olharmos a vida em seus pequenos detalhes, tudo parece bem ridículo. É como uma gota d'água vista num microscópio, uma só gota cheia de protozoários. Achamos muita graça como eles se agitam e lutam tanto entre si. Aqui, no curto período de vida humana, essa actividade febril produz um efeito cómico."

Shopenhauer

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Delicadeza e sensibilidade...

"As pessoas delicadas são aquelas que a cada ideia ou gosto juntam muitas ideias ou muitos gostos acessórios. As pessoas grosseiras apenas têm uma sensação; a sua alma não sabe compor nem descompor; não juntam nem retiram nada ao que a natureza fornece: ao passo que as pessoas delicadas no amor criam elas próprias a maior parte dos prazeres do amor. Polixena e Apicio trouxeram para a mesa bastantes sensações desconhecidas aos nossos vulgares manjares; e aqueles que julgam o gosto das obras do espírito possuem e produzem uma infinidade de sensações que os outros homens não possuem."

in “Ensaio Sobre o Gosto”, Baron de Montesquieu

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Soneto a liberdade...

"Não que eu ame teus filhos cujo olhar obtuso
Somente vê a própria e repugnante dor,
Cuja mente não sabe, ou quer saber, de nada
É que, com seu rugir, tuas Democracias,

Teus reinos de Terror e grandes Anarquias
Reflectem meus afãs extremos como o mar,
Dando-me Liberdade! -à cólera uma irmã.
Minha alma circunspecta gosta de teus gritos

Confusos só por causa disso: do contrário,
Reis com sangrento açoite ou seus canhões traiçoeiros
Roubavam às nações seus sagrados direitos,

Deixando-me impassível e ainda, ainda assim,
Esses Cristos que morrem sobre as barricadas,
Deus sabe que os apoio ao menos parcialmente."

Oscar Wilde

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Tu aprendes...

"Depois de algum tempo,
aprendes a diferença, a subtil diferença
entre dar a mão e acorrentar a alma.

E aprendes que amar não significa apoiares-te,
e que companhia nem sempre significa segurança.

E começas a aprender que beijos não são contratos
e presentes não são promessas.

E começas a aceitar as tuas derrotas com a cabeça erguida
e os olhos a olhar em frente com a graça de um adulto,
e não com a tristeza de uma criança.

E aprendes a construir hoje todas as tuas estradas,
porque o terreno de amanhã é demasiado incerto para fazer planos,
e o futuro tem o costume de cair a meio do vôo.

Depois de algum tempo,
aprendes que até o sol queima
se ficares exposto durante muito tempo.

Portanto, planta o teu jardim e decora a tua alma,
em vez de esperares que alguém te traga flores.
E aprenderás que realmente podes suportar...
Que realmente és forte e que realmente tens valor..."

William Shakespeare

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segunda-feira, agosto 21, 2006

...

"Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisaras passar para atravessar o rio da vida. Ninguém excepto tu, só tu...
Existem, por certo atalhos sem número, e pontes, e semi-deuses que se ofereceram para levar-te alem do rio; mas isso te custaria a tua própria pessoa; tu hipotecarias e te perderias.
Existe no mundo um único caminho por onde só tu deves passar.
Onde leva?
Não perguntes... segue-o!"

Nietszche

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Saber...

"O mundo é um lugar perigoso de se viver, não por causa daqueles que fazem o mal, mas sim por causa daqueles que observam e deixam o mal acontecer."

Albert Einstein

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Sofa in Netherland...

foto: Ernst Landgrebe

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Meu sonho...

"Parei as águas do meu sonho
para teu rosto se mirar.
Mas só a sombra dos meus olhos
ficou por cima, a procurar...
Os pássaros da madrugada
não têm coragem de cantar,
vendo o meu sonho interminável
e a esperança do meu olhar.
Procurei-te em vão pela terra,
perto do céu, por sobre o mar.
Se não chegas nem pelo sonho,
por que insisto em te imaginar?
Quando vierem fechar meus olhos,
talvez não se deixem fechar.
Talvez pensem que o tempo volta,
e que vens, se o tempo voltar."

Cecilia Meirelles

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Sonhos sem ilusões...

"Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos. Atingirás assim o ponto supremo da abstenção sonhadora, onde os sentimentos se mesclam, os sentimentos se extravasam, as ideias se interpenetram. Assim como as cores e os sons sabem uns a outros, os ódios sabem a amores, e as coisas concretas a abstractas, e as abstractas a concretas. Quebram-se os laços que, ao mesmo tempo que ligavam tudo, separavam tudo, isolando cada elemento. Tudo se funde e confunde."

in “O Livro do Desassossego”, Fernando Pessoa

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Hoje acordei assim...

Kate Hudson
E tu sabes porquê...

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domingo, agosto 20, 2006

As coisas secretas da alma...

"Em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até à morte delas. E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abismos nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos mais queridos - porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz. Estas coisas são materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou - não permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir - apenas sons para as caricaturar. E como essas ideias-entranha são as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os «isolados» que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam."

in "Cartas a Fernando Pessoa", Mário de Sá-Carneiro

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Talvez...

"No ar da sala, o fumo dos cigarros misturava-se com a música que saía das colunas do gira-discos. Todas as pessoas estavam juntas em conversas. Para lá da idade que tinham, eram demasiado jovens. Seguravam copos. Sorriam e entusiasmavam-se ou concentravam o olhar e ouviam. Na rua, talvez chovesse. Os vidros altos da porta da varanda não mostravam mais do que a noite. Ele e ela eram indistintos de todos os outros. As imagens dos seus rostos e dos seus corpos eram naturais entre os casacos aos quadrados, as camisas de colarinhos pontiagudos, as calças de fazenda. Estavam sentados no sofá, lado a lado, e tinham terminado de conversar no momento em que as palavras dele lentamente se dissolveram no fumo dos cigarros e na música que saía das colunas do gira-discos, no momento em que ela não soube responder a uma conclusão banal. Para lá das palavras e da memória das palavras, continuou o significado daquilo que realmente disseram enquanto conversavam: os riscos brandos do sorriso dele à volta dos cantos da boca, a atenção solícita dos olhos dela, o tronco dele a aproximar-se a cada frase,
os dedos dela a acertarem os cabelos por trás das orelhas, os joelhos dele a tocarem as pernas dela, os lábios dela a articularem cada palavra como se estivessem pousados sobre os lábios dele.

Ela tinha talvez 25 ou 26 ou 27 anos. Ele tinha talvez a mesma idade. Ela tinha os cabelos lisos e escorridos sobre as costas. A pele do seu rosto era serena tal como se estivesse calma e desejasse ainda mais tranquilidade. Ele tinha os primeiros dias de uma barba que crescia e que já se podia imaginar. Os seus olhos eram o início de um caminho verde como uma floresta. De cada vez que um deles levava o copo aos lábios, o outro imitava-o e havia um momento em que pensavam na mesma coisa. Tinham sabido o nome um do outro há pouco mais de uma hora. Tinham começado a conversar porque as únicas pessoas que conheciam os tinham deixado juntos e tinham ido conversar com outros. Assim que foram apresentados, depois de sorrisos, simpatia, ele escolheu palavras para lhe perguntar o que fazia.

Ela respondeu que trabalhava numa produtora de cinema. Não lhe disse que passava os dias numa sala vazia, sentada a uma secretária, frente a um telefone que nunca tocava, a preocupar-se com a mãe que estava sozinha e deprimida em casa, com as facas todas alinhadas na gaveta dos talheres e com as promessas de matar-se ainda vivas na memória e com os pulsos ainda ligados pela última tentativa: a ambulância a serpentear pelas ruas, e ela com os dedos pousados sobre a testa da mãe, e a mãe com as pálpebras sem força pousadas sobre os olhos. Não lhe disse que chegava de manhã cedo, deixava a mala em cima da secretária e, depois de abrir as janelas, ficava imóvel e perdia todas as palavras dentro dos pensamentos. A claridade tocava os cartazes de filmes em que não tinha trabalhado, mas que tinha escolhido para afixar nas paredes. No fim da manhã, chegava o dono da produtora que, não esperando resposta, abrindo cartas com contas da luz e da água, perguntava se alguém tinha telefonado. Tinha sido ele que, na cama de uma pensão, durante um cigarro, a tinha convidado para trabalhar ali, quando ela ainda estava apaixonada e ainda acreditava que um dia ele iria deixar a mulher e, pedindo-lhe opiniões, iria realizar filmes lindos como os seus sonhos. Não lhe disse que, durante a hora de almoço, uma ou duas ou três vezes por semana, faziam sexo em cima da secretária, ou encostados à secretária, ou no chão em cima de um tapete. Não lhe disse que ele saía no início da tarde e que, só então, ela tirava a caixa de plástico da mala, os talheres embrulhados num guardanapo de pano e almoçava.

Ele falou longamente sobre cinema. Disse-lhe que ia muito ao cinema quando vivia na terra onde tinha nascido e de onde tinha saído para estudar Teatro no Conservatório. Não lhe disse que o homem do cinema o deixava sempre assistir de graça desde que ficasse durante todo o filme sentado no seu colo. Não lhe disse que, depois de cada filme, todos os rapazes que andavam com ele na escola, e todos os rapazes mais velhos, lhe chamavam nomes e lhe batiam. Não lhe disse que os homens ficavam encostados às grades da casa ao lado do café a verem e a rirem-se. No recreio da escola, batiam-lhe também. No caminho para a escola, batiam-lhe, tiravam-lhe a mala e espalhavam pelo chão os livros e os cadernos com páginas sujas de lama. Depois, já era mais velho, e os colegas continuavam a bater-lhe e desviava o olhar, ficava parado quando os rapazes mais novos lhe vinham dar pontapés nas pernas e murros no centro das costas. Não lhe disse que, nos três anos de Conservatório, não tinha conseguido passar a nenhuma disciplina porque tinha vergonha da sua própria voz, porque tropeçava na sua própria voz em cada palavra que tinha de dizer. A noite, trabalhava num bar onde via actores e onde falava com alguns deles, onde lhes oferecia copos de plástico com vodka e sumo de laranja, e onde se ria exageradamente de cada . vez que algum dizia uma piada. Depois, voltava para o seu quarto, adormeciaa pensar e, pouco depois, quando amanhecia, não tinha forças para se levantar. A viúva que lhe arrendava o quarto batia à porta e perguntava-lhe se não ia às aulas, dizia-lhe que arrendava quartos a estudantes e não a vagabundos. Então, levantava-se, vestia-se e caminhava sozinho pelas ruas da baixa. Olhava para as montras e sentava-se à frente de uma chávena vazia de café nas esplanadas onde sabia que não chegariam empregados a perguntar-lhe o que queria tomar.

Ela disse-lhe que uma produtora de cinema precisa sempre de actores. Ele disse-lhe que um actor precisa sempre de produtoras de cinema. Riram-se. E disseram muitas coisas. E não disseram muitas coisas. No ar da sala, a música do gira-discos era indistinta do fumo dos cigarros. Havia algum tempo que grupos de pessoas tinham escolhido momentos para se despedirem com sorrisos e saírem.

A sala estava cada vez mais vazia. Eles continuavam sentados no sofá, lado a lado, as palavras dele dissolveram-se no fumo e na música. Ela não soube responder a uma conclusão banal. Cruzaram os olhares e levantaram-se ao mesmo tempo. Despediram-se daqueles que conheciam e saíram juntos. Ela pensava que talvez. Ele pensava que talvez ."

José Luis Peixoto

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Tarde de mais...

"Quando chegaste enfim, para te ver
Abriu-se a noite em mágico luar
E para o som de teus passos conhecer
Pôs-se o silêncio, em volta, a escutar...

Chegaste, enfim! Milagre de endoidar!
Viu-se nessa hora o que não pode ser:
Em plena noite, a noite iluminar
E as pedras do caminho florescer!

Beijando a areia de oiro dos desertos
Procurara-te em vão! Braços abertos,
Pés nus, olhos a rir, a boca em flor!

E há cem anos que eu era nova e linda!...
E a minha boca morta grita ainda:
Porque chegaste tarde, ó meu Amor?!..."

Florbela Espanca

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sábado, agosto 19, 2006

Feliz como uma criança...

“Oh! A idade venturosa da infância! Onde há outra mais feliz e mais tranquila, mais sorridente – isto é, mais egoísta?... Em volta de nós podem suceder as piores catástrofes. Se elas nos não arrancam nem os brinquedos nem os bolos, não nos atingem de forma alguma... não as compreendemos sequer...
Quando muito, correm-nos lágrimas vendo chorar as nossas mães. No entanto, é só ainda vagamente que percebemos a dor humana. Por isso as nossas lágrimas secam depressa diante dos brinquedos. E se o quadro em que nos agitamos é risonho, a infância transforma-se-nos então num jardim maravilhoso. Para as crianças felizes, só para elas, existe realmente um céu – o céu dos seus primeiros anos.”

in “O Incesto”, Mário de Sá-Carneiro

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Sobre a tranquilidade da alma...

"Não são precisas coisas mais duras pelas quais já passámos, como por exemplo resistires a ti próprio, ameaçares-te, enfureceres-te. É sim necessário aquilo que vem em último lugar: que confies em ti próprio e que acredites que vais no caminho correcto, sem qualquer desvio. O que desejas é algo de grandioso e próximo do divino: não sofrer nenhum abalo.
Os gregos deram o nome de euthymia a este equilíbrio. Eu chamo-lhe tranquilidade."

in "Sobre a tranquilidade da alma", Séneca

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Gabrielle d'Estrées and one of her sister...

Fontainebleau School

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No Amor, mil almas, mil maneiras diferentes...

"Nem todas as mulheres experimentam os mesmos sentimentos.
Encontrareis mil almas com mil maneiras diferentes. Para as conquistar, empregai mil maneiras. A mesma terra não produz todas as coisas: tal convém à vinha, tal à oliveira; aqui despontarão cereais em abundância. Há nos corações tantos caracteres diferentes, quantos rostos há no mundo. O homem prudente acomodar-se-á a estes inumeráveis caracteres; novo Proteu, tão depressa se diluirá em ondas fluidas para logo ser um leão, uma árvore, um javali de eriçadas cerdas. Os peixes apanham-se aqui com o arpão, ali com o anzol, acolá com as redes puxadas pela corda estendida. E o mesmo método não convirá a todas as idades: uma corça velha descobrirá a armadilha de mais longe; se te mostrares experiente junto de uma noviça, demasiado petulante junto de uma recatada, ela desconfiará que a vais tornar infeliz. Assim é que a mulher que às vezes teme entregar-se a um homem honesto, caiu vergonhosamente nos braços de alguém que a não merece."

in "A Arte de Amar", Ovídio

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sexta-feira, agosto 18, 2006

...

"Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca d’um abrigo;
E apesar d’isso, crês? Nunca pensei n’um lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.

Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito,
Como a esposa sensual do Cântico dos Cantos

Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como esse sol de Inverno.

Passo contigo a tarde, e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro o olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.

Eu não sei se é amor. Será talvez começo.
Eu não sei que mudança a minha alma presente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente."

in "Clepsydra", Camilo Pessanha

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A morte de Narciso...



"Quando Narciso morreu, a taça de água doce que era o lago dos seus prazeres converteu-se em taça de lágrimas amargas e as Oréadas vieram carpindo pelos bosques a fim de cantar para ele, consolando-o.
E quando perceberam que o lago se transmudara de taça de água doce noutra de lágrimas amargas, desgrenharam as tranças verdes dos seus cabelos e disseram:
- Não nos admiramos de que pranteeis Narciso dessa maneira. Ele era tão belo!
- Narciso era belo? - indagou o lago.
- Quem sabe melhor do que vós? - responderam as Oréadas. Ao cortejar-vos, ele nos desprezava, debruçado às vossas margens mirando-vos, e, no espelho de vossas águas, contemplava a própria beleza.
E o lago retrucou:
- Eu amava Narciso porque, quando ele se debruçava sobre as minhas margens para contemplar-me, eu via sempre refletir-se no espelho dos seus olhos a minha própria beleza."

Óscar Wilde
Imagem: Caravaggio

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As palavras...

"... Sim Senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as... Amo tanto as palavras... As inesperadas... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem... Vocábulos amados... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho... Persigo algumas palavras... São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema... Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as... Deixo-as como estalactites em meu poema; como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda... Tudo está na palavra... Uma ideia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu... Têm sombra, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que, se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes... São antiquíssimas e recentíssimas. Vivem no féretro escondido e na flor apenas desabrochada... Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos... Estes andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas. Américas encrespadas, buscando batatas, botifarras, feijõezinhos, tabaco negro, ouro, milho, ovos fritos, com aquele apetite voraz que nunca. Mais, se viu no mundo... Tragavam tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais às que eles traziam em suas grandes bolsas... Por onde passavam a terra ficava arrasada... Mas caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras. Como pedrinhas, as palavras luminosas que permaneceram aqui resplandecentes... o idioma. Saímos perdendo... Saímos ganhando... Levaram o ouro e nos deixaram o ouro... Levaram tudo e nos deixaram tudo... Deixaram-nos as palavras."

Pablo Neruda

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Fogo preso...

"Quando se ateia em nós um fogo preso,
O corpo a corpo em que ele vai girando
Faz o meu corpo arder no teu aceso
E nos calcina e assim nos vai matando
Essa luz repentina até perder alento,
E então é quando
A sombra se ilumina,
E é tudo esquecimento, tão violento e brando.
Sacode a luz o nosso ser surpreso
E devastados nós vamos a seu mando,
Nessa prisão o mundo perde o peso
E em fogo preso à noite as chamas vão pairando
E vão-se libertando
Fogo e contentamento,
A revoar num bando
De beijos tão sem tento
Que não sabemos quando
São fogo, ou água, ou vento
A revoar num bando
De beijos tão sem tento,
Que perdem o comando
Do próprio esquecimento."

Vasco Graça Moura

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quinta-feira, agosto 17, 2006

A fonte...

Da espalda de um rochedo, gota a gota
límpida fonte sobre o mar caia,
Mas, ao vê-la tombar em seu regaço:
" O que queres de mim?" O mar dizia.
Eu sou da tempestade o antro escuro;
Onde termina o céu aí começo;
Eu que nos braços toda a terra espreito,
De ti, tão pobre e vil, de ti careço?...”
No tom saudoso do quebrar das águas
Ao mar, serena, a fonte assim murmura:
"A ti, que és grande e forte, a pobre fonte
Vem dar-te o que não tens, dar-te a doçura!"

Victor Hugo

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Um lugar...

"Onde nenhum. Um tempo para tentar ver. Tentar dizer. Quão pequeno. Quão vasto. Se não ilimitado com que limites. Donde o obscuro. Agora não. Agora que se sabe mais. Agora que não se sabe mais. Sabe-se somente que saída não há. Sem se saber porque se sabe somente que saída não há. Somente entrada. E daí um outro. Um outro lugar onde nenhum. Donde outrora dali regresso nenhum. Não. Lugar nenhum a não ser só um. Nenhum lugar a não ser só um onde lugar nenhum. Donde nunca outrora uma entrada. Dalgum modo uma entrada. Sem um só além. Dali donde não há ali. Por lá onde por lá não há. Ali sem de lá nem dali nem sequer por onde."

in "Pioravante Marche", Samuel Beckett

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Quero dizer-te uma coisa simples...



"Quero dizer-te uma coisa simples: a tua ausência dói-me.
Refiro-me a essa dor não magoa, de deixar alguns sinais - um peso nos olhos, no lugar da tua imagem, e um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes tivessem roubado o tacto. São estas as formas do amor, podia dizer-te; e acrescentar que as coisas simples também podem ser complicadas, quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade. Porém, é o sonho que me traz a tua memória; e a realidade aproxima-se de ti, agora que ficam presas numa refracção de instantes, quando a tua voz me chama de dentro de mim - e me faz responder-te uma coisa simples, como dizer que a tua ausência me dói."

Nuno Júdice
Foto: Stewart Lloyd-Jones

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quarta-feira, agosto 16, 2006

Ophelia...

Natalie Shau

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...

"A alma humana é um manicómio de caricaturas.
Se uma alma pudesse revelar-se com verdade. E nem houvesse um pudor mais profundo que todas as vergonhas conhecidas, definidas. Seria, como dizem, da verdade o poço, mas um poço sinistro, cheio de ecos vagos, habitado por vidas ignóbeis, viscosidades sem vida, lesmas sem ser. Ranho da subjectividade.
Eis a alma".

Fernando Pessoa

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Aqui está a minha vida...

"Aqui está minha vida.
Esta areia tão clara com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui está minha voz,
esta concha vazia, sombra de som
curtindo seu próprio lamento
Aqui está minha dor,
este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança,
este mar solitário
que de um lado era amor e, de outro,
esquecimento."

Cecília Meireles

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Um beijo...

"Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no de abrir-se a dentes línguas
tão penetrantes quanto línguas podem.
Mas beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
E dentes se apertando delicados.
É língua que na boca se agitando
irá de um corpo inteiro descobrir o gosto
e sobretudo o que se oculta em sombras
e nos recantos em cabelos vive.
É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja."

Jorge de Sena

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Escrevo-te a sentir tudo isto...

"Escrevo-te a sentir tudo isto
e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata da fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto ao fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva do lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco morde a
sua imobilidade

Habito neste país de água por engano
são-me necessárias imagens radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de romã
repara
como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar."

in "Trabalhos do Olhar", Al Berto

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segunda-feira, agosto 14, 2006

Hoje sinto-me assim...

Keira Knightley
Vou preparar-me para sair... contigo!!

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As amoras...

"O meu país sabe as amoras bravas no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul."

Sophia de Mello Breyner Andresen

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Rosa...

"En ti la tierra
Pequeña
rosa,
rosa pequeña,
a veces,
diminuta y desnuda,
parece
que en una mano mía
cabes,
que así voy a cerrarte
y a llevarte a mi boca,
pero
de pronto
mis pies tocan tus pies y mi boca tus labios,
has crecido,
suben tus hombros como dos colinas,
tus pechos se pasean por mi pecho,
mi brazo alcanza apenas a rodear la delgada
línea de luna nueva que tiene tu cintura:
en el amor como agua de mar te has desatado:
mido apenas los ojos más extensos del cielo
y me inclino a tu boca para besar la tierra."

Pablo Neruda

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domingo, agosto 13, 2006

Desejo...

"Desejo primeiro que você ame,
E que amando, também seja amado.
E que se não for, seja breve em esquecer.
E que esquecendo, não guarde mágoa.

Desejo, pois, que não seja assim
Mas se for, saiba ser sem se desesperar
Desejo também que tenha amigos
Que mesmo maus e inconsequentes
Sejam corajosos e fiéis
E que pelo menos em um deles
Você possa confiar sem duvidar

E porque a vida é assim
Desejo ainda que você tenha inimigos
Nem muitos, nem poucos
Mas na medida exacta para que
Algumas vezes você se interpele
A respeito de suas próprias certezas.
E que entre eles
Haja pelo menos um que seja justo

Desejo depois, que você seja útil
Mas não insubstituível
E que nos maus momentos
Quando não restar mais nada
Essa utilidade seja suficiente
Para manter você de pé.

Desejo ainda que você seja tolerante
Não com os que erram pouco
Porque isso é fácil
Mas com os que erram muito e irremediavelmente
E que fazendo bom uso dessa tolerância
Você sirva de exemplo aos outros

Desejo que você, sendo jovem,
Não amadureça depressa demais
E que sendo maduro
Não insista em rejuvenescer
E que sendo velho
Não se dedique ao desespero
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor

Desejo, por sinal, que você seja triste
Não o ano todo, mas apenas um dia
Mas que nesse dia
Descubra que o riso diário é bom
O riso habitual é insosso
E o riso constante é insano.

Desejo que você descubra
Com o máximo de urgência
Acima e a respeito de tudo
Que existem oprimidos, injustiçados e infelizes
E que estão bem à sua volta
Desejo ainda
Que você afague um gato, alimente um cuco
E ouça o joão-de-barro
Erguer triunfante o seu canto matinal
Porque assim, você se sentirá bem por nada

Desejo também
Que você plante uma semente, por menor que seja
E acompanhe o seu crescimento
Para que você saiba
De quantas muitas vidas é feita uma árvore

Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro
Porque é preciso ser prático
E que pelo menos uma vez por ano
Coloque um pouco dele na sua frente e diga:
"Isso é meu"
Só para que fique bem claro
Quem é o dono de quem

Desejo também
Que nenhum de seus afectos morra
Por eles e por você
Mas que se morrer
Você possa chorar sem se lamentar
E sofrer sem se culpar

Desejo por fim
Que você sendo homem, tenha uma boa mulher
E que sendo mulher, tenha um bom homem
Que se amem hoje, amanhã e nos dias seguintes
E quando estiverem exaustos e sorridentes
Ainda haja amor para recomeçar

E se tudo isso acontecer
Não tenho mais nada a lhe desejar."

Victor Hugo

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sábado, agosto 12, 2006

O tempo acaba o ano, o mês e a hora...

"O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora;

O tempo busca e acaba o onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza;
Mas não pode acabar minha tristeza,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grão bonança.

Mas de abrandar o tempo estou seguro
O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança."

Luís Vaz de Camões

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Landscape...

foto: Brian Gudas

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...

"A alma humana é um manicómio de caricaturas. Se uma alma pudesse revelar-se com verdade. E nem houvesse um pudor mais profundo que todas as vergonhas conhecidas, definidas.
Seria, como dizem, da verdade o poço, mas um poço sinistro, cheio de ecos vagos, habitado por vidas ignóbeis, viscosidades sem vida, lesmas sem ser.
Ranho da subjectividade.
Eis a alma".

Fernando Pessoa

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Quotidiano...

"Nunca são as coisas mais simples que aparecem quando as esperamos. O que é mais simples, como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se encontra no curso previsível da vida. Porém, se nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos nos empurrou para fora do caminho habitual, então as coisas são outras. Nada do que se espera transforma o que somos se não for isso: um desvio no olhar; ou a mão que se demora no teu ombro, forçando uma aproximação dos lábios."

in "Meditação sobre ruínas", Nuno Júdice

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sexta-feira, agosto 11, 2006

Marie Adelaide of France as Flora...

Jean-Marc Nattier

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A mentira é mais interessante que a verdade...

"«O que é a verdade»?
Perguntava Pilatos gracejando, talvez que não esperasse pela resposta. Há quem se delicie com a inconstância, e considere servidão o fixar-se numa crença; há quem se afeiçoe ao livre-arbítrio tanto no pensar como no agir. E se bem que as seitas de filósofos desta espécie hajam desaparecido, sobrevivem alguns representantes da mesma família, apesar de nas veias não lhes correr tanto sangue como nas dos antigos. Não é somente a dificuldade e a canseira que o homem experimenta ao perseguir a verdade, nem sequer o facto de, uma vez encontrada, se impor aos pensamentos humanos, o que leva a conceder às mentiras os maiores favores; é sim, um natural mas corrompido amor da própria mentira. Uma das últimas escolas dos Gregos examinou esta questão, mas deteve-se a pensar no que leva o homem a armar as mentiras, quando não o faz por prazer, como os poetas, ou por utilidade, como os mercadores, mas pelo próprio mentir.

Não sei como dizê-lo, mas a verdade é uma luz nua e crua que não mostra as máscaras, as cegadas e os cortejos do mundo com metade da altivez e da graciosidade com que aparecem iluminados pelos candelabros. A verdade pode, talvez, atingir o preço da pérola que mais brilha durante o dia, mas não alcança o preço do diamante ou do carbúnculo que tanto mais brilham quanto mais variadas forem as luzes. Com a mistura da mentira mais se acresce o prazer. Haverá alguém para duvidar que, tirando ao espírito humano as opiniões vãs, as esperanças lisonjeiras, as falsas valorações, as imaginações pessoais, etc., para a maior parte da gente tudo o mais não seria senão uma espécie de pobres coisas contraídas, cheias de melancolia e de indisposição, enfim, desagradáveis?"

in "Ensaios - Da Verdade", Francis Bacon

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A verdade está à frente do nosso nariz...

"Nós já esquecemos completamente o axioma de que a verdade é a coisa mais poética no mundo, especialmente no seu estado puro. Mais do que isso: é ainda mais fantástica que aquilo que a mente humana é capaz de fabricar ou conceber... de facto, os homens conseguiram finalmente ser bem sucedidos em converter tudo o que a mente humana é capaz de mentir e acreditar em algo mais compreensível que a verdade, e é isso que prevalece por todo o mundo. Durante séculos a verdade irá continuar à frente do nariz das pessoas mas estas não a tomarão: irão persegui-la através da fabricação, precisamente porque procuram algo fantástico e utópico."

in "Diário de um Escitor", Fiodor Dostoievski

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quinta-feira, agosto 10, 2006

Porquê nem para quê...

"O amor fino não há-de ter "porquê" nem "para quê".
Se amo porque me amam, é obrigação, faço o que devo; se amo para que me amem, é negociação, busco o que desejo.
Pois como há-de ser o amor para ser fino?
Amo porque amo e para amar."

Padre António Vieira

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Victoria amazonica...

Leo Kao

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Sweer love...

"Sweet love, renew thy force! Be it not said
Thy edge should blunter be than appetite,
Which but today by feeding is allayed,
Tomorrow sharpened in his former might.
So, love, be thou, although today thou fill
Thy hungry eyes, even till they wink with fulness,
Tomorrow see again, and do not kill
The spirit of love with a perpetual dullness.
Let this sad interim like the ocean be
Which parts the shore where two contracted new
Come daily to the banks, that, when they see
Return of love, more blest may be the view;
As call it winter, which being full of care
Makes summer's welcome thrice more wished, more rare."

William Shakespeare

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Vem comigo...

"Vem comigo
ver as pirâmides fantásticas do vento
no interior luminoso da terra encontrarás
o segredo de quartzo para desvendares o tempo
onde contemplamos a doçura das cerejas

iremos para onde os restos de vida não acordem
a dor da imensa árvore a sombra
dos cabelos carregados de pólenes e de astros
crescemos lado a lado com o dragão
o súbito relâmpago dos frutos amadurecendo
iluminará por um instante as águas do jardim
e o alecrim perfumará os noctívagos passos
há muito prisioneiros no barro
onde o rosto se transforme e morre
e já não nos pertence

vem comigo
praticar essa arte imemorial de quem espera
não se sabe o quê junto à janela
encolho-me
como se fechasse uma gaveta para sempre
caminhasse onde caiu um lenço
mas levanto os olhos
quando o verão entra pelo quarto e devassa
esta humilde existência de papel

vem comigo
as palavras nada podem revelar
esqueci-as quase todas onde vislumbro um fogo
pegando fogo ao corpo mais próximo do meu."

in "Uma Existência de Papel", Al Berto

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Deserto...



"O deserto não é a ausência.
É o estado anterior à presença, antes da travessia dos nómadas, antes da paragem dos aventureiros...
Donde vem esta nostalgia que trazemos connosco, que dá por vezes o sentimento de termos perdido a parte de imensidão que é nossa....
Haverá um espaço perdido, que pode ressurgir ao sabor dos nossos confrontos com as imensidões que cruzamos, o céu, os oceanos, os desertos, a noite...
Trará o código genético, além dos testamentos, o vestígio de uma viagem sem limites através dos esconderijos do universo...
Há nestes impulsos misteriosos para espaços infinitos, a marca de um esforço para o reencontro com uma imensidão dantes conhecida e, depois, desaparecida...
A vida seria então a construção de um invólucro que desamarra do mundo uma parcela de infinito, para lhe dar um peso, um lugar, um princípio e um fim.”

in "The wondrous voyager", Yves Simon

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Eu quero...

Dior's ultra-chic stiletto

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quarta-feira, agosto 09, 2006

Todas as opiniões...

"Todas as opiniões que há sobre a Natureza
Nunca fizeram crescer uma erva ou nascer uma flor.
Toda a sabedoria a respeito das cousas
Nunca foi cousa em que pudesse pegar como nas cousas;
Se a ciência quer ser verdadeira,
Que ciência mais verdadeira que a das cousas sem ciência?

Fecho os olhos e a terra dura sobre que me deito
Tem uma realidade tão real que até as minhas costas a sentem.
Não preciso de raciocínio onde tenho espáduas."

Alberto Caeiro

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A verdadeira natureza humana...

"A humildade fica perto da disciplina moral; a simplicidade de carácter fica perto da verdadeira natureza humana; e a lealdade fica perto da sinceridade de coração. Se um homem cultivar cuidadosamente essas coisas na sua conduta, não estará longe do padrão da verdadeira natureza humana. Com a humildade, ou uma atitude piedosa, um homem raramente comete erros; com a sinceridade de coração, um homem é geralmente digno de confiança; e com a simplicidade de carácter é comummente generoso.
Cometerá poucos erros."

in “A Sabedoria de Confúcio”, Confúcio

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Portrait of a young girl...

Petrus Christus

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Os amantes...

"Olhai como um para o outro crescem:
Espírito se faz tudo em suas veias.
As suas formas tremem como eixos
a cuja volta há um girar quente e arrebatado.
Sequiosos, logo encontram que beber.
Despertos - olhai: logo têm que ver.
Deixai que se afundem um no outro,
para um no outro se vencer."

Rainer Maria Rilke

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terça-feira, agosto 08, 2006

Trémulo...



"Trémulo permaneço dia e noite; meus amigos ficam espantados.
Mas perdoam o meu divagar, pois não posso afastar-me da grande tarefa!
A tarefa de abrir os Mundos Eternos, de abrir a Visão Imortal
Do Homem para os Mundos Interiores de seu Pensamento: para a Eternidade
Em contínua expansão no Seio de Deus: para a Imaginação Humana."

Texto e imagem: William Blake

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A natureza humana...

"A natureza humana (...) tem seus limites: pode suportar a alegria, o sofrimento, a dor até certo ponto, arruina-se, porém, mal ele seja ultrapassado. Assim, a questão não é ser-se fraco ou forte, mas conseguir suportar a medida do seu sofrimento, seja moral ou físico. E acho tão estranho chamar covarde a quem põe fim à própria vida como a quem morre de febre maligna".

in "A paixão do jovem Werther!, Goethe

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Os bonecos de barro...

"O que ela amava acima de tudo era fazer bonecos de barro, o que ninguém lhe ensinara. Trabalhava numa pequena calçada de cimento em sombra, junto à última janela do porão. Quando queria com muita força ia pela estrada até ao rio. Numa de suas margens, escalável embora escorregadia, achava-se o melhor barro que alguém poderia desejar: branco, maleável, pastoso: frio. Só em pegá-lo, em sentir sua frescura delicada, alegrezinha e cega, aqueles pedaços timidamente vivos, o coração da pessoa se enternecia húmido quase ridículo. Virgínia cavava com os dedos aquela terra pálida e lavada, na lata presa à cintura iam se reunindo os trechos amorfos. O rio em pequenos gestos molhava-lhe os pés descalços e ela mexia os dedos húmidos com excitação e clareza. As mãos livres, ela então cuidadosamente galgava a margem até a extensão plana. No pequeno pátio de cimento depunha a sua riqueza. Misturava o barro à água, as pálpebras frementes de atenção, concentrada, o corpo à escuta, ela podia obter uma porção exacta de barro e de água numa sabedoria que nascia naquele mesmo instante, fresca e progressivamente criada. Conseguia uma matéria clara, e tenra de onde se poderia modelar um mundo.
Como, como explicar o milagre...
Ela se amedrontava pensativa. Nada dizia, não se movia, mas interiormente sem nenhuma palavra repetia: Eu não sou nada, não tenho orgulho, tudo me pode acontecer; se quiser, me impedirá de fazer a massa de barro; se quiser, pode me pisar, me estragar tudo; eu sei que não sou nada. Era menos que uma visão, era uma sensação no corpo, um pensamento assustado sobre o que lhe permita conseguir tanto barro e água e diante de quem ela devia humilhar-se com seriedade. Ela lhe agradecia com uma alegria difícil, frágil e tensa; sentia em alguma coisa como o que não se vê de olhos fechados. Mas o que não se vê de olhos fechados tem uma existência e uma força, como o escuro, como a ausência, compreendia-se ela, assentindo feroz e muda com a cabeça. Mas nada sabia de si, passaria inocente e distraída pela sua realidade sem reconhecê-la; como uma criança, como uma pessoa.
Depois de obtida a matéria, numa queda de cansaço ela poderia perder a vontade de fazer bonecos. Então ia vivendo para a frente como uma menina.
Um dia, porém, sentia seu corpo aberto e fino, e no fundo uma serenidade que não se podia conter, ora se desconhecendo, ora respirando trémula de alegria, as coisas incompletas. Ela mesma insone como luz, esgazeada, fugaz, vazia, mas no íntimo um ardor que era vontade de guiar-se a uma só coisa, um interesse que fazia o coração acelerar-se sem ritmo... de súbito, como era vago viver. Tudo isso também poderia passar, a noite caindo repentinamente, a escuridão fresca sobre o dia morno.
Mas às vezes ela se lembrava do barro molhado, corria alegre e assustada para o pátio: mergulhava os dedos naquela mistura fria, muda e constante como uma espera; amassava, amassava, aos poucos ia extraindo formas. Fazia crianças, cavalos, uma mãe com um filho, uma mãe sozinha, uma menina fazendo coisas de barro, um menino descansando, uma menina contente, uma menina vendo se ia chover, uma flor, um cometa de cauda salpicada de areia lavada, uma flor murcha com sol por cima, o cemitério do Brejo Alto, uma moça olhando... Muito mais, muito mais. Pequenas formas que nada significavam, mas que eram na realidade misteriosas e calmas. Às vezes alta como uma árvore alta, mas não eram árvores, não eram nada... Ás vezes, um pequeno objecto de forma quase estrelada, mas sério e cansado como uma pessoa. Um trabalho que jamais acabaria, isso era o que de mais bonito e atento ela já soubera. Pois se ela podia fazer o que existia e o que não existia!...

Depois de prontos, os bonecos eram colocados ao sol. Ninguém lhe ensinara, mas ela os depositava nas manchas de sol no chão, manchas sem vento nem ardor. O barro secava mansamente, conservava o tom claro, não enrugava, não rachava. Mesmo quando seco parecia delicado, evanescente e húmido. E ela própria podia confundi-lo com o barro pastoso.
As figurinhas assim, pareciam rápidas, quase como se fossem se desmanchar — e isso era como se elas fossem se movimentar. Olhava para o boneco imóvel e mudo. Por amor ou apenas prosseguindo o trabalho ela fechava os olhos e se concentrava numa força viva e luminosa, da qualidade do perigo e da esperança, numa força de sede que lhe percorria o corpo celebremente com um impulso que se destinava à figura. Quando, enfim, se abandonava, seu fresco e cansado bem-estar vinha de que ela podia enviar, embora não soubesse o que, talvez. Sim ela às vezes possuía um gosto dentro do corpo, um gosto alto e angustiante que tremia entre a força e o cansaço, era um pensamento como sons ouvidos, uma flor no coração: Antes que ele se dissolvesse, maciamente rápido, no seu ar interior, para sempre fugitivo, ela tocava com os dedos num objecto, entregando-o. E, quando queria dizer algo que vinha fino, obscuro e liso — e isso poderia ser perigoso — ela encostava um dedo apenas, um dedo pálido, polido e transparente, um dedo trémulo de direcção. No mais agudo e doído do seu sentimento ela pensava: Sou feliz. Na verdade, ela o era nesse instante, e se em vez de pensar: Sou feliz, procurava o futuro, era porque, obscuramente, escolhia um movimento para a frente que servisse de forma à sua sensação.
Assim juntara uma procissão de coisas miúdas. Quedavam-se quase despercebidas no seu quarto. Eram bonecos magrinhos e altos como ela mesma. Minuciosos, ligeiramente desproporcionados, alegres, um pouco perplexos, às vezes, subitamente, pareciam um homem coxo rindo. Mesmo suas figurinhas mais suaves tinham uma imobilidade atenta como a de um santo. E pareciam inclinar-se, para quem as olhava, também como os santos. Virgínia podia fitá-las uma manhã inteira, que seu amor e sua surpresa não diminuiriam.

— Bonito... bonito como uma coisinha molhada, dizia ela excedendo-se num ímpeto imperceptível e doce.

Ela observava: mesmo bem acabados, eles eram toscos como se pudessem ainda ser trabalhados. Mas vagamente, ela pensava que nem ela nem ninguém poderia tentar aperfeiçoá-los sem destruir sua linha de nascimento. Era como se eles só pudessem se aperfeiçoar por si mesmos, se isso fosse possível.
As dificuldades surgiam como uma vida que vai crescendo. Seus bonecos, pelo efeito do barro claro, eram pálidos. Se ela queria sombreá-los não o conseguia com o auxílio da cor, e por força dessa deficiência aprendeu a lhes dar sombra ainda por meio de forma. Depois inventou uma liberdade: com uma folhinha seca sob um fino traço de barro conseguia um vago colorido, triste assustada quase inteiramente morto. Misturando barro à terra, obtinha ainda outro material menos plástico, porém mais severo e solene.
MAS COMO FAZER O CÉU?
Nem começar podia! Não queria nuvens, o que poderia obter, pelo menos grosseiramente — mas o céu, o céu mesmo, com sua existência, cor solta, ausência de cor. Ela descobriu que precisava usar uma matéria mais leve que não pudesse sequer ser apalpada, sentida, talvez apenas vista, quem sabe! Compreendeu que isso, ela conseguiria com tintas.
E às vezes numa queda, como se tudo se purificasse, ela se contentava em fazer uma superfície lisa, serena, unida, numa simplicidade fina e tranquila."

Clarice Lispector

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Chuva de amor...

"Força de amor te derruba
no furor do pensamento
mas não como bloco. Em chuva
arremessada no vento.
E és minha lentamente
enquanto a terra se sente
beber-te a água sem fim.
Não podes negar-te. Vives
com a linha de declives
inclinada sobre mim."

Fernando Echevarria

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segunda-feira, agosto 07, 2006

Visita-me enquanto eu não envelheço...

"Visita-me enquanto eu não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com o teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores
vem

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos
vem

antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água
vem

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-se."

in "Two Friends e uma Paixão”, Al Berto

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A busca da felicidade ou do sofrimento...

"O homem recusa o mundo tal como ele é, sem aceitar o eximir-se a esse mesmo mundo. Efectivamente os homens gostam do mundo e, na sua imensa maioria, não querem abandoná-lo. Longe de quererem esquecê-lo, sofrem, sempre, pelo contrário, por não poderem possuí-lo suficientemente, estranhos cidadãos do mundo que são, exilados na sua própria pátria. Excepto nos momentos fulgurantes da plenitude, toda a realidade é para eles imperfeita. Os seus actos escapam-lhes noutros actos; voltam a julgá-los assumindo feições inesperadas; fogem, como a água de Tântalo, para um estuário ainda desconhecido. Conhecer o estuário, dominar o curso do rio, possuir enfim a vida como destino, eis a sua verdadeira nostalgia, no ponto mais fechado da sua pátria. Mas essa visão que, ao menos no conhecimento, finalmente os reconciliaria consigo próprios, não pode surgir; se tal acontecer, será nesse momento fugitivo que é a morte; tudo nela termina. Para se ser uma vez no mundo, é preciso deixar de ser para sempre.

Neste ponto nasce essa desgraçada inveja que tantos homens sentem da vida dos outros. Apercebendo-se exteriormente dessas existências, emprestam-lhes uma coerência e uma unidade que elas não podem ter, na verdade, mas que ao observador parecem evidentes. Este não vê mais que a linha mais elevada dessas vidas, sem adquirir consciência do pormenor que as vai minando. Então fazemos arte sobre essas existências. Romanceamo-las de maneira elementar. Cada um, nesse sentido, procura fazer da sua vida uma obra de arte. Desejamos que o amor perdure e sabemos que tal não acontece; e ainda que, por milagre, ele pudesse durar uma vida inteira, seria ainda assim um amor imperfeito. Talvez que, nesta insaciável necessidade de subsistir, nós compreendêssemos melhor o sofrimento terrestre, se o soubéssemos eterno. Parece que, por vezes, as grandes almas se sentem menos apavoradas pelo sofrimento do que pelo facto de este não durar. À falta de uma felicidade incansável, um longo sofrimento ao menos constituiria um destino. Mas não; as nossas piores torturas terão um dia de acabar. Certa manhã, após tantos desesperos, uma irreprimível vontade de viver virá anunciar-nos que tudo acabou e que o sofrimento não possui mais sentido do que a felicidade."

in “O Homem Revoltado”, Albert Camus

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Hoje sinto-me assim...

Drew Barrymore
Sweeeeeeeeeeeeeeeettttt...

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domingo, agosto 06, 2006

Despierta...



"Pobres hombres de ambición infinita,
no han logrado cosechar las flores,
en su búsqueda han quedado ciegos,
sólo pueden defender riquezas,
han quedado amarrados al estiércol,
ya ni saben cuánto van teniendo.

Pobres hombres, tan eterna angustia,
compran casas, coches, yates, lujos...
sienten en sus cuerpos tantos miedos,
sufren de delirios, de persecuciones.
Cambian seres vivos por lingotes,
creen que el brillo de oro es su salvación.

Pobres hombres necios, inhumanos,
¡sus ojos son ciegos, no ven nada!
para ellos no hay luna ni estrellas,
ni caricias tersas ni nostalgia.
Es por esos hombres que se acaba
un planeta, que lo tiene todo,
que nos dio la vida y la sangre,
los mares, los ríos, las sonrisas.

Es por esos hombres, mis hermanos,
que otros hermanos traen panzas vacías,
se mueren de hambre ¡son calacas!
se mueren de frío ¡son cenizas!
Somos engranes de sus empresas,
fuimos tornillos o algunas tuercas.

¡Vamos, hermano, lucha y despierta!"

Pablo Cerda
imagem: "Les Sabines", Jean-Louis David

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Sonhos prometedores...

"Tenho mais pena dos que sonham o provável, o legítimo e o próximo, do que dos que devaneiam sobre o longínquo e o estranho. Os que sonham grandemente, ou são doidos e acreditam no que sonham e são felizes, ou são devaneadores simples, para quem o devaneio é uma música da alma, que os embala sem lhes dizer nada. Mas o que sonha o possível tem a possibilidade real da verdadeira desilusão. Não me pode pesar muito o ter deixado de ser imperador romano, mas pode doer-me o nunca ter sequer falado à costureira que, cerca das nove horas, volta sempre a esquina da direita. O sonho que nos promete o impossível já nisso nos priva dele, mas o sonho que nos promete o possível intromete-se com a própria vida e delega nela a sua solução. Um vive exclusivo e independente; o outro submisso das contingências do que acontece."

in “O Livro do Desassossego”, Fernando Pessoa

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Saber pegar na asa certa...

"Qualquer coisa tem duas asas: uma que nos permite que a levemos connosco, a outra que tal intenção não nos facilita. Se o teu irmão tem mau feitio, não o chames a ti levando a mão à asa que se manifesta de modo errado. Por aí, é-te impossível levar a bom termo o teu propósito. Toma-o antes pela asa boa, pela mão que se não recusa à tua mão - e se te lembrares que ele é teu irmão, que foi amamentado contigo, logo verás que o podes chamar a ti."

in “Manual” , Epicteto

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A grande questão...

"A grande questão... que eu não pude responder, a despeito de trinta anos de pesquisa da alma feminina, é: o que quer a mulher?"

Sigmund Freud

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Water serpents...

Gustav Klimt

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sábado, agosto 05, 2006

Tenho medo de não conseguir manter as minhas ideias...



"Tenho medo de não conseguir manter minhas ideias, meus pontos de vista, minhas escolhas. A minha cabeça é como um guarda que não permite que eu estacione em local algum. Eu fico dando voltas e voltas no meu cérebro e quando encontro uma vaga para ocupar, o guarda diz: circulando, circulando...
Você está me entendendo? Eu não tenho área de repouso. Raramente desligo, e quando isso acontece, não dá nem tempo para o motor esfriar. Não é por outra razão que estou aqui tentando colocar ordem nessas ideias que vivem em trânsito. Não chego a temer a loucura, no fundo a gente sabe que ninguém é muito certo. Eu tenho medo é da lucidez. Tenho medo dessa busca desenfreada pela verdade, pelas respostas. Eu me esgoto tentando morder meu próprio rabo. Quando estou acostumando com uma versão de mim mesma, surge outra, cheia de enigmas, e vou atrás dela. Tem gente que elege uma única versão de si próprio e não olha mais para dentro. Esses é que são os lunáticos..."

Martha Madeiros
imagem: Ernst Klimt

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Como me sinto?...

"Como me sinto?
Como se colocassem dois olhos sobre uma mesa e dissessem a mim, a mim que sou cego: isso é aquilo que vê, essa é a matéria que vê. Toco os dois olhos sobre a mesa, lisos, tépidos ainda, arrancaram há pouco, gelatinosos, mas não vejo o ver. É assim o que sinto tentando materializar na narrativa a convulsão do meu espírito, e desbocado e cruel, manchado de tintas, essas pardas escuras do não saber dizer, tento amputado conhecer o passo, cego conhecer a luz, ausente de braços tento te abraçar, Conhecimento ."

Hilda Hilst

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Vivia a ostra bela e ajuizadamente numa rocha...

"Vivia a ostra bela e ajuizadamente numa rocha.
Não sonhava com o amor, mas quando fazia bom tempo ficava boquiaberta, na maior beatitude possível. Encontrou-a porém o arenque, e foi uma paixão à primeira vista. Ficou perdidamente enamorado sem se atrever a confessar-lho. Ora num dia de Verão a ostra bocejava feliz e queda. Encolhido atrás de um rochedo o arenque contemplava-a mas, de súbito, beijar a bem amada foi um desejo tão forte que nem pôde refreá-lo.
Meteu-se então entre as placas abertas da ostra e esta, surpreendida, fechou-as decapitando o miserável que flutuou à deriva e sem cabeça, pelo oceano."

in "O Poeta Assassinado", Guillaume Apolinaire

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Lembranças, que lembrais meu bem passado...

"Lembranças, que lembrais meu bem passado,
Pera que sinta mais o mal presente,
Deixai-me, se quereis, viver contente,
Não me deixeis morrer em tal estado.

Mas se também de tudo está ordenado
Viver, como se vê, tão descontente,
Venha, se vier, o bem por acidente,
E dê a morte fim a meu cuidado.

Que muito melhor é perder a vida,
Perdendo-se as lembranças da memória,
Pois fazem tanto dano ao pensamento.

Assim que nada perde quem perdida
A esperança traz de sua glória,
Se esta vida há-de ser sempre em tormento."

Luís Vaz de Camões

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Hoje sinto-me assim...

Liv Tyler
A isto se chama saudades...

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sexta-feira, agosto 04, 2006

Eu ou tu?...

"Gosto destes jogos em que já se sabe quem vai ganhar.
Eu ou tu?, qual das peças avançará primeiro?
Pouco importa, no fundo.
A minha dúvida nasce da tua certeza, como a
resposta que me dás é esta dúvida que te devolvo."

in "O jogo das interrogações", Nuno Júdice

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You can't have It all...

"But you can have the fig tree and its fat leaves like clown hands
gloved with green. You can have the touch of a single eleven-year-old finger
on your cheek, waking you at one a.m. to say the hamster is back.
You can have the purr of the cat and the soulful look
of the black dog, the look that says, If I could I would bite
every sorry until it fled, and when it is August,
you can have it August and abundantly so. You can have love,
though often it will be mysterious, like the white foam
that bubbles up at the top of the bean pot over the red kidneys
until you realize foam’s twin is blood.
You can have the skin at the center between a man’s legs,
so solid, so doll-like. You can have the life of the mind,
glowing occasionally in priestly vestments, never admitting pettiness,
never stooping to bribe the sullen guard who’ll tell you
all roads narrow at the border.
You can speak a foreign language, sometimes,
and it can mean something. You can visit the marker on the grave
where your father wept openly. You can’t bring back the dead,
but you can have the words forgive and forget hold hands
as if they meant to spend a lifetime together. And you can be grateful
for makeup, the way it kisses your face, half spice, half amnesia, grateful
for Mozart, his many notes racing one another toward joy, for towels
sucking up the drops on your clean skin, and for deeper thirsts,
for passion fruit, for saliva. You can have the dream,
the dream of Egypt, the horses of Egypt and you riding in the hot sand.
You can have your grandfather sitting on the side of your bed,
at least for a while, you can have clouds and letters, the leaping
of distances, and Indian food with yellow sauce like sunrise.
You can’t count on grace to pick you out of a crowd,
but here is your friend to teach you how to high jump,
how to throw yourself over the bar, backwards,
until you learn about love, about sweet surrender,
and here are periwinkles, buses that kneel, farms in the mind
as real as Africa. And when adulthood fails you,
you can still summon the memory of the black swan on the pond
of your childhood, the rye bread with peanut butter and bananas
your grandmother gave you while the rest of the family slept.
There is the voice you can still summon at will, like your mother’s,
it will always whisper, you can’t have it all,
but there is this."

in "Bite Every Sorrow", Barbara Ras,

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As queixas de um ícaro

"Os rufiões das rameiras são
Ágeis, felizes e devassos;
Quanto a mim, fracturei os braços
Por ter-me alçado além do chão.

É graças aos mais raros astros,
Que o céu envolvem num lampejo,
Que, agora cego, já não vejo
Dos sóis senão os turvos rastros.

Eu quis do espaço em toda parte
Achar em vão o fim e o meio;
Não sei sob que olho de ígneo veio
Minha asa eu sinto que se parte;

E porque o belo ardeu comigo,
Perdi a glória e o benefício
De dar meu nome ao precipício
Que há de servir-me de jazigo."

Charles Baudelaire

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Butterfly...

Michael Brown

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Nunca evitei o desafio

"Nunca evitei o desafio
Na frente de quem seja campeão
Mas hoje quem me lança o repto
É a beleza que mata com requebros,
Beijos doces e abraços,
Com que me dá saudação,
Cadeias
Que me apertam como laços.
Minha vida é dada às armas
E a couraça só a tiro
Com o peito a palpitar
Se a beleza oculta em véus
Eu pressinto em seu arfar."

Ibn Darraj Al-Quastalli (958-1030)

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quinta-feira, agosto 03, 2006

Amor ou posse?...

"O nosso "amor pelo próximo" não será o desejo imperioso de uma nova propriedade? E não sucede o mesmo com o nosso amor pela ciência, pela verdade? E, mais geralmente, com todos os desejos de novidade? Cansamo-nos pouco a pouco do antigo, do que possuímos com certeza, temos ainda necessidade de estender as mãos; mesmo a mais bela paisagem, quando vivemos diante dela mais de três meses, deixa de nos poder agradar, qualquer margem distante nos atrai mais: geralmente uma posse reduz-se com o uso. O prazer que tiramos a nós próprios procura manter-se, transformando sempre qualquer nova coisa em nós próprios; é precisamente a isso que se chama possuir.

Cansar-se de uma posse é cansar-se de si próprio. (Pode-se também sofrer com o excesso; à necessidade de deitar fora, pode assim atribuir-se o nome lisonjeiro de "amor"). Quando vemos sofrer uma pessoa aproveitamos de bom grado essa ocasião que se oferece de nos apoderarmos dela; é o que faz o homem caridoso, o indivíduo complacente; chama também "amor" a este desejo de uma nova posse que despertou na sua alma e tem prazer nisso como diante do apelo de uma nova conquista. Mas é o amor de sexo para sexo que se revela mais nitidamente como um desejo de posse: aquele que ama quer ser possuidor exclusivo da pessoa que deseja, quer ter um poder absoluto tanto sobre a sua alma como sobre o seu corpo, quer ser amado unicamente, instalar-se e reinar na outra alma como o mais alto e o mais desejável."

in "A Gaia Ciência", Friedrich Nietzsche

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...

“Fico admirado quando alguém, por acaso e quase sempre
sem motivo, me diz que não sabe o que é o amor.
eu sei exactamente o que é o amor. O amor é saber
que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.
o amor é saber que vamos perdoar tudo a essa parte
de nós que não é nossa. o amor é sermos fracos.
o amor é ter medo e querer morrer.”

in "A Criança em Ruínas", José Luís Peixoto

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Ontem á noite...

"Ontem — sozinhos — eu e tu, sentados,
Nos contemplamos quando a noite veio:
Queixosa e mansa a viração dos prados
Beijava o rosto e te afagava o seio,
Que palpitava como ao longe o mar...
E lá no céu esses rubis pregados
Brilhavam menos que teu vivo olhar!

Com a mão nas minhas, no silêncio augusto,
Tu me falavas sem mentido susto,
E nunca a virgem que a paixão revela,
Passou-me em sonhos tão formosa assim!"

Victor Hugo

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